sábado, 13 de dezembro de 2025

Constranger, reagir, enfrentar. Por Flávia Oliveira

O Globo

Inconformismo, em vez de resignação; empenho, em vez de omissão; ação, em vez de passividade

Nesta semana, a polícia do Rio de Janeiro voltou ao Complexo do Salgueiro, na Região Metropolitana, em mais um capítulo da política de enfrentamento ao Comando Vermelho. Cerca de mil agentes participaram de nova etapa da Operação Contenção, a mesma que, em fins de outubro, deixou 117 civis e cinco agentes mortos nas regiões do Alemão e da Penha, Zona Norte da capital. Cinco anos atrás, uma mal explicada incursão de policiais civis e federais no mesmo conjunto de favelas de São Gonçalo tirou a vida do adolescente João Pedro Mattos Pinto, aos 14 anos. O assassinato dentro da casa de parentes, em plena pandemia da Covid-19, levou o ministro Edson Fachin, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a proibir operações em comunidades durante a crise sanitária.

Foi o primeiro ato do STF na ADPF das Favelas, que, recentemente, levou à prisão o deputado Rodrigo Bacellar, afastado da presidência da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) por decisão do ministro Alexandre de Moraes, sucessor de Fachin na relatoria. Da ADPF saíram as exigências de uso de câmeras corporais pelas forças de segurança; elaboração de planos de redução da letalidade policial e retomada pelo Estado de territórios dominados pelos grupos armados; e investigação pela Polícia Federal das facções com atuação interestadual, bem como das conexões do poder local com o crime organizado.

A execução de João Pedro — até hoje impune — espalhou no Brasil a onda de manifestações que, naquele mesmo maio de 2020, tomaram cidades dos Estados Unidos em protesto pelo assassinato de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco. Por aqui, multiplicaram-se nas redes sociais postagens de fundo preto com o slogan #vidasnegrasimportam, traduzido do movimento Black Lives Matter. Também viralizou a frase de Angela Davis, professora, escritora, filósofa e ativista:

— Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.

Trata-se de convocação a uma atitude firme contra a discriminação racial: inconformismo, em vez de resignação; empenho, em vez de omissão; ação, em vez de passividade.

A sentença da ex-Pantera Negra se espalhou feito rastilho de pólvora, mas antirracismo, de fato, pouco se viu. Nos últimos tempos, de carona com as práticas xenófobas e supremacistas de Donald Trump, pela segunda vez presidente dos Estados Unidos, o que ganhou força em corporações, espaços de poder, muitos corações e mentes foi o enfrentamento despudorado à inclusão reivindicada por pretos e pardos, mulheres, indígenas, LGBTQIA+. Um mundo tornado chato — contém ironia — por minorias que, historicamente apartadas das melhores condições de vida, cobram equidade.

Em analogia ao antirracismo de antes, o prefixo que sinaliza oposição e contrariedade faz-se necessário também noutras frentes. Urge diante das ameaças permanentes do machismo e do golpismo. O país — há que repetir até cansar — vive uma epidemia de feminicídios, agressões, ofensas, ataques, abusos contra meninas, jovens e mulheres. As estatísticas se avolumam; as brasileiras se desesperam; a legislação, mesmo farta, não dá conta. Se verdadeiramente indignados com a barbárie, homens precisam despir o silêncio e levantar suas vozes contra piada, comentário, discurso ou ato de misoginia. Mulheres não demoliremos sozinhas os pilares de uma sociedade assentada na violência de gênero. Não espancar, violentar ou assassinar mulheres não é suficiente. A hora é de constranger, reagir, enfrentar os que espancam, violentam e assassinam.

Na política, idem. A democracia brasileira experimenta um golpismo continuado, expresso não somente na trama que deu em mais de 1.600 ações penais, 500 acordos de não persecução penal, quase 700 condenações, entre as quais a de Jair Bolsonaro. Nesta semana, emergiu na Câmara dos Deputados mais um episódio de ataque ao regime estabelecido na Constituição de 1988. Na madrugada de quarta-feira, o plenário aprovou o Projeto de Lei da Dosimetria, eufemismo para a anistia branda desenhada sob medida para o ex-presidente da República, preso numa sala da Polícia Federal em Brasília.

Para reduzir à metade o período de detenção em regime fechado do líder da extrema direita, os parlamentares não hesitaram em desfigurar a Lei de Execução Penal e em alterar o arcabouço de proteção à democracia, promulgado pelo próprio Bolsonaro em 2021. Foram capazes de ratificar um texto que impõe ao Judiciário a incorporação do crime de abolição violenta do Estado Democrático pelo de golpe tentado; permite redução de pena por livro lido em custódia domiciliar; institui progressão de regime com um sexto do prazo de prisão, nos casos que não envolverem violência a pessoa ou patrimônio.

Contra o golpismo recorrente, somente o antigolpismo inegociável. Ou estaremos condenados, como escreveu o historiador Carlos Fico, repetindo Francisco Iglésias, à sempre “melancólica trajetória nacional”.

 

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