O Globo
Inconformismo, em vez de resignação; empenho,
em vez de omissão; ação, em vez de passividade
Nesta semana, a polícia do Rio de Janeiro voltou ao Complexo do Salgueiro, na Região Metropolitana, em mais um capítulo da política de enfrentamento ao Comando Vermelho. Cerca de mil agentes participaram de nova etapa da Operação Contenção, a mesma que, em fins de outubro, deixou 117 civis e cinco agentes mortos nas regiões do Alemão e da Penha, Zona Norte da capital. Cinco anos atrás, uma mal explicada incursão de policiais civis e federais no mesmo conjunto de favelas de São Gonçalo tirou a vida do adolescente João Pedro Mattos Pinto, aos 14 anos. O assassinato dentro da casa de parentes, em plena pandemia da Covid-19, levou o ministro Edson Fachin, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a proibir operações em comunidades durante a crise sanitária.
Foi o primeiro ato do STF na ADPF das
Favelas, que, recentemente, levou à prisão o deputado Rodrigo Bacellar,
afastado da presidência da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) por decisão do
ministro Alexandre de Moraes, sucessor de Fachin na relatoria. Da ADPF saíram
as exigências de uso de câmeras corporais pelas forças de segurança; elaboração
de planos de redução da letalidade policial e retomada pelo Estado de
territórios dominados pelos grupos armados; e investigação pela Polícia Federal
das facções com atuação interestadual, bem como das conexões do poder local com
o crime organizado.
A execução de João Pedro — até hoje impune —
espalhou no Brasil a onda de manifestações que, naquele mesmo maio de 2020,
tomaram cidades dos Estados Unidos em protesto pelo assassinato de George
Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco. Por aqui, multiplicaram-se
nas redes sociais postagens de fundo preto com o slogan #vidasnegrasimportam,
traduzido do movimento Black Lives Matter. Também viralizou a frase de Angela
Davis, professora, escritora, filósofa e ativista:
— Numa sociedade racista, não basta não ser
racista. É necessário ser antirracista.
Trata-se de convocação a uma atitude firme
contra a discriminação racial: inconformismo, em vez de resignação; empenho, em
vez de omissão; ação, em vez de passividade.
A sentença da ex-Pantera Negra se espalhou
feito rastilho de pólvora, mas antirracismo, de fato, pouco se viu. Nos últimos
tempos, de carona com as práticas xenófobas e supremacistas de Donald Trump,
pela segunda vez presidente dos Estados Unidos, o que ganhou força em
corporações, espaços de poder, muitos corações e mentes foi o enfrentamento
despudorado à inclusão reivindicada por pretos e pardos, mulheres, indígenas,
LGBTQIA+. Um mundo tornado chato — contém ironia — por minorias que,
historicamente apartadas das melhores condições de vida, cobram equidade.
Em analogia ao antirracismo de antes, o
prefixo que sinaliza oposição e contrariedade faz-se necessário também noutras
frentes. Urge diante das ameaças permanentes do machismo e do golpismo. O país
— há que repetir até cansar — vive uma epidemia de feminicídios, agressões,
ofensas, ataques, abusos contra meninas, jovens e mulheres. As estatísticas se
avolumam; as brasileiras se desesperam; a legislação, mesmo farta, não dá
conta. Se verdadeiramente indignados com a barbárie, homens precisam despir o
silêncio e levantar suas vozes contra piada, comentário, discurso ou ato de
misoginia. Mulheres não demoliremos sozinhas os pilares de uma sociedade
assentada na violência de gênero. Não espancar, violentar ou assassinar
mulheres não é suficiente. A hora é de constranger, reagir, enfrentar os que
espancam, violentam e assassinam.
Na política, idem. A democracia brasileira
experimenta um golpismo continuado, expresso não somente na trama que deu em
mais de 1.600 ações penais, 500 acordos de não persecução penal, quase 700
condenações, entre as quais a de Jair Bolsonaro. Nesta semana, emergiu na
Câmara dos Deputados mais um episódio de ataque ao regime estabelecido na
Constituição de 1988. Na madrugada de quarta-feira, o plenário aprovou o
Projeto de Lei da Dosimetria, eufemismo para a anistia branda desenhada sob
medida para o ex-presidente da República, preso numa sala da Polícia Federal em
Brasília.
Para reduzir à metade o período de detenção
em regime fechado do líder da extrema direita, os parlamentares não hesitaram
em desfigurar a Lei de Execução Penal e em alterar o arcabouço de proteção à
democracia, promulgado pelo próprio Bolsonaro em 2021. Foram capazes de
ratificar um texto que impõe ao Judiciário a incorporação do crime de abolição
violenta do Estado Democrático pelo de golpe tentado; permite redução de pena
por livro lido em custódia domiciliar; institui progressão de regime com um
sexto do prazo de prisão, nos casos que não envolverem violência a pessoa ou
patrimônio.
Contra o golpismo recorrente, somente o
antigolpismo inegociável. Ou estaremos condenados, como escreveu o historiador
Carlos Fico, repetindo Francisco Iglésias, à sempre “melancólica trajetória
nacional”.

Nenhum comentário:
Postar um comentário