O Globo
Os que roubaram os pensionistas do INSS logo
estarão soltos (isso se um dia chegarem a ser presos). Idem para o político
corrupto
A palavra do ano, para a equipe do dicionário
Cambridge, foi parassocial (aquela
sensação de intimidade — não recíproca — com figuras públicas). O Oxford veio
de rage bait (conteúdo
criado para gerar engajamento na força do ódio). No Brasil, segundo a
consultoria Cause e o instituto de pesquisa Ideia, foi “incerteza”. Eu teria votado
em “progressão”, com novo sentido, o de retrocesso.
Na cadeia, progressão é o regime que permite ao condenado cumprir apenas 1/6 da pena. Na escola, o que empurra o aluno adiante, mesmo que ele não tenha aprendido nada. É o Estado não educando no sistema educacional nem reeducando no sistema penitenciário. A aposta é que o aluno incapaz de entender a tabuada do 2 se recupere magicamente mais tarde, quando chegar à tabuada do 7. Que o criminoso adquira, na rua, os princípios morais que lhe faltavam antes do curto estágio de confinamento.
Ambas as progressões são bem-intencionadas:
não fazer da reprovação um atestado de fracasso, favorecer a ressocialização.
Na prática, são uma pedagogia do faz de conta. Uma adia o insucesso, a outra
induz à reincidência. O resultado é o analfabetismo funcional, a sensação de
impunidade. Os que roubaram os pensionistas do INSS logo estarão soltos (isso
se um dia chegarem a ser presos). Idem para o político corrupto ou golpista,
para o homicida, o traficante, o miliciano.
Quando o poder público se omite, o desejo de
justiça, inerente ao ser humano, vira sanha de justiçamento. Nas redes sociais
não faltam vídeos de reações violentas a assaltos e de espancamento de
assaltantes e estupradores — a maioria com comentários do tipo “vídeo
satisfatório”, “cervejinha cancelada com sucesso”, “quem tem dó é piano”,
“adoro finais felizes”. É a sociedade se adaptando “à subsombra desumana dos
linchadores”.
Recentemente, um juiz do Rio mandou soltar um
“suspeito” de 21 anos, com 86 passagens pela polícia (preso sete vezes nos últimos
três anos) e seu comparsa. O argumento:
— Não se pode presumir que os acusados
retornarão a delinquir, posto que no Estado Democrático de Direito não há
espaço para exercício de futurologia.
A 87ª prisão (quem diria!) veio cerca de um
mês depois. Uma juíza de Goiás liberou outro “suspeito”, com histórico de
homicídio, porte ilegal de arma, roubo e tráfico.
— Você de novo, Kaique? Me ajuda a te ajudar
— pediu a magistrada, na audiência de custódia.
Solto, o rapaz, também de 21 anos, foi morto
seis meses depois, em confronto com a polícia. Ter sido posto em liberdade
certamente não o ajudou muito.
Toda a justa indignação pela quantidade de
feminicídios e de atos de violência contra a mulher deveria vir acompanhada de
uma reflexão sobre a política de devolver prematuramente os agressores às ruas
e sobre o que leva tantos homens a se sentir seguros para fazer o que fazem.
Talvez incivilidade, por falta de educação, em casa e na escola. Talvez a
certeza de impunidade.
O lema positivista que inspirou o dístico da
bandeira nacional era “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por
fim”. O amor ficou de fora logo de cara. A ordem foi confundida com
autoritarismo e desdenhada. Sobrou o progresso, aquela marcha inexorável rumo a
um mundo melhor — que pegou um retorno, ganhou um aumentativo e deu nisso:
bandido bom é bandido solto x bandido bom é bandido morto, e a escola como
tempo jogado fora entre a matrícula e o diploma.

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