O Globo
A arte vira abrigo em uma semana de tensão
institucional entre os Três Poderes e afrontas ao Estado de Direito
A literatura e o teatro me protegeram
enquanto eu atravessava a tormentosa semana que passou. Conflitos entre poderes
chegaram ao nível de se temer pela firmeza dos edifícios. Uma ventania, que
lembrou ciclone, varreu São Paulo avisando que os extremos do clima chegaram.
No domingo, li “Coração sem medo” de Itamar Vieira Junior e, logo de início, me
encantei com esta frase: “As águas, as águas daquele instante, correm para
sempre e sem destino”.
Nos dias da semana, o Congresso nos deu seguidas razões para a descrença. Na terça-feira, as cenas de briga física no arranca-deputado da cadeira da presidência da Câmara foram inomináveis. Votações ruins na madrugada informaram que o parlamento brasileiro espera os eleitores dormirem para sorrateiramente cumprir seus desígnios. A quinta-feira amanheceu sobre o nosso espanto porque a Câmara havia ultrapassado todos os limites, atacando uma das bases fundantes do Estado de Direito: a de que ordem judicial se cumpre.
“Mande-se ao arquivo”, disse o presidente da
Casa, Hugo Motta, referindo-se à ordem do Supremo Tribunal Federal de que fosse
cassada a deputada Carla Zambelli. No plenário da Câmara, deputados pularam.
Comemoravam uma decisão inconstitucional. Zambelli foi condenada, em ação com
trânsito em julgado, por ter invadido, com ajuda de hacker, o sistema do
Conselho Nacional de Justiça. Sua cassação é decorrência automática da
condenação, e ordem do STF não se arquiva. O Supremo declarou nula a decisão da
Câmara.
A democracia foi uma construção difícil que
nos consumiu por anos. As artes foram a corda na travessia do despenhadeiro. Na
quinta, o ator Othon Bastos levou ao palco da Academia Brasileira de Letras o
magnífico espetáculo “Não me entrego, não!”, de Flávio Marinho. Pleno em seus
92 anos, ele passeia pelo palco e pela história do Brasil ao falar da própria
carreira. Othon lembrou uma frase de Mário Quintana — “Não faças da tua vida um
rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo” — para falar dos dolorosos
anos 1970. “Se existe uma fase na minha vida que eu não passaria a limpo seria
a década de 70, apesar de toda a repressão e censura. E se eu fosse obrigado a
escolher um ano específico da década, eu cravava 1973.”
Na década, ele e sua mulher, Martha Overbeck,
fundaram uma companhia de teatro que levou notáveis obras aos palcos do país.
Em 1973, rodou o Brasil com “Um grito parado no ar”. O Brasil naquele ano
sentia o que está descrito no título da obra. As salas lotaram, às vezes com
três encenações por dia. “Não por semana, por dia”, frisou.
O Senado aprovou em dois turnos,
desrespeitando o intervalo obrigatório de cinco sessões, a PEC do Marco
Temporal. Ela retira direitos de indígenas à terra. É a eterna luta pela terra
no Brasil. O Supremo já disse que a tese é inconstitucional. O Congresso quer
fazê-la valer na marra.
Todos afrontam o Supremo, inclusive o
Supremo. Não, o ministro Dias Toffoli não poderia ter viajado para assistir ao
jogo em Lima no jatinho de um empresário, com o advogado de um dos investigados
do caso Master a bordo. E estando presente neste voo não poderia ter posto em
sigilo o caso do Banco Master. Menos ainda ter paralisado as investigações
sobre o banco que cometia fraudes enquanto bajulava políticos. A busca dos
fatos está em andamento. Esse grito está parado no ar, naquele avião.
Itamar Vieira Junior, na sua trilogia, fala
da luta pelo território, no campo ou na cidade. Eu o entrevistei no meu
programa na GloboNews na quarta-feira. “Coração sem medo é sobre aqueles que
foram absolutamente desgarrados da terra. A Rita Preta deixa a sua terra
quando, com 12 anos, vai trabalhar na cidade como empregada doméstica, algo que
vimos inúmeras vezes no Brasil das últimas décadas”, contou ele sobre a
personagem principal do seu novo romance que, como tantas mulheres da
periferia, enfrentou o desaparecimento do filho numa violenta ação policial na
favela.
Perguntei a Itamar que tipo de brasileiro ele
era, o que sofre pelas dores do país ou o que tem esperanças? Ele disse que é
os dois. “A gente não pode mudar o que já aconteceu, e é isso que essas
histórias apontam. Mas a gente pode voltar a ter esperança.” No palco da ABL,
Othon Bastos chega ao fim do monólogo citando Federico García Lorca: “O teatro
é a poesia que se levanta do livro e se torna humana”. No sábado, fui ver
Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir. Assim me protegi em uma semana de
tornados nos Três Poderes.

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