O Estado de S. Paulo
Impeachment de ministro do STF transformou-se em matéria política, o que é contrário à Lei 1.079/1950 e à Constituição de 1988
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem muito a
melhorar; por exemplo, é muito bem-vinda a iniciativa do presidente da Corte,
ministro Edson Fachin, de criar um código de ética para os integrantes de
tribunais superiores. No entanto, o impeachment não é instrumento político para
coagir o STF a mudanças. Ele tem outra função.
Seu âmbito de funcionamento está definido na Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950), que estabeleceu cinco crimes de responsabilidade de ministro do STF: 1) alterar, exceto por recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do tribunal; 2) proferir julgamento, quando seja suspeito na causa; 3) exercer atividade político-partidária; 4) ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; 5) proceder de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções.
Primeiro ponto sobre esses cinco tipos
penais: o legislador não previu crime de hermenêutica. Não se pode afastar do
cargo um ministro do STF em razão do conteúdo de suas decisões. Por mais que a
atividade jurisdicional desagrade parcela majoritária da população, isso não é
motivo, segundo a Lei do Impeachment, para afastar um integrante da Corte.
Segundo. Nenhuma das hipóteses da Lei
1.079/1950 trata de temas que demandam análise política. Os cinco crimes de
responsabilidade da Lei do Impeachment referem-se a aspectos comportamentais
dos integrantes do STF, aptos a serem verificados objetivamente. Esses cinco
tipos penais protegem bens jurídicos objetivos; fundamentalmente, a
independência e a imparcialidade do sistema de Justiça.
Conclui-se desses dois pontos: segundo os
próprios tipos penais da Lei 1.079/1950, o impeachment de ministro do STF não é
matéria para pautar eleição para o Senado. O instituto do impeachment existe
para proteger o funcionamento do Judiciário, não para submetê-lo às opiniões
políticas do momento.
Concorde-se ou não com as decisões do Supremo, há algo profundamente disfuncional quando o debate sobre a próxima composição do Senado se concentra em facilitar a remoção de ministros do STF. É sinal de que um instrumento de proteção do regime republicano está sendo usado para reduzir, ou mesmo retirar, a independência do Judiciário. Há, portanto, que admitir: mesmo controvertida, a decisão liminar do ministro Gilmar Mendes não foi absurda. A tutela de urgência tinha fundamento.
Impeachment de ministro do STF transformou-se
em matéria política, o que é contrário à Lei 1.079/1950 e à Constituição de
1988. Na discussão sobre a remoção de integrantes do Supremo na próxima
legislatura, não há nenhuma análise sobre o enquadramento da conduta dos
magistrados aos tipos penais previstos na lei. Fala-se tão somente da
indignação com a atuação da Corte e das condições políticas para retirar seus
membros. De forma escancarada, a possibilidade de impeachment passou a servir
de ameaça. Instaurou-se a confusão: há até quem pense que faz parte da
democracia brasileira submeter o Judiciário a escrutínio popular.
Talvez alguém questione: mas a Lei do
Impeachment existe desde 1950 e só agora o ministro Gilmar Mendes viu a
necessidade de fazer reparos em seu rito? Ora, a lei é também o uso que se faz
dela. A Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) não vinha causando maiores
problemas, até o presidente Jair Bolsonaro usála para perseguir opositores
políticos. Ficou, então, evidente sua incompatibilidade com a Constituição de
1988.
O rito da Lei 1.079/1950 é falho. Sendo a
função do Supremo contramajoritária, o cargo de um ministro do STF não pode
ficar à mercê de uma maioria simples do Senado. De toda forma, até pouco tempo
atrás, essa brecha não havia sido instrumentalizada para perseguir integrantes
da Corte. Inconformados com a atuação jurisdicional do Supremo, grupos
políticos tentam agora usá-la não apenas para ameaçar magistrados, mas como
tática eleitoral, como se pudessem produzir uma Corte à sua imagem e
semelhança.
Uma observação. Essa turma não ficará
satisfeita com retirar Alexandre de Moraes ou Dias Toffoli. No momento em que perceberem
que conseguem remover um ministro do STF em função de decisões que lhes
desagradam, vão querer reformar todo o tribunal. Será o fim da independência
judicial.
Talvez alguém rebata: mas o problema não são
as decisões do STF; há ministros agindo “de modo incompatível com a honra, a
dignidade e o decoro de suas funções”. Será mesmo esse o ponto? A grande
indignação com Dias Toffoli, por exemplo, não é por causa de viagem em jatinho
particular, e sim por suas decisões no âmbito da Lava Jato. Com Alexandre de
Moraes, o mesmo. A revolta é por sua condução dos inquéritos e processos.
Eis a importância da iniciativa do presidente do STF. Mais do que eleger um Senado com sangue nos olhos contra o Supremo, que não respeitará a independência do Judiciário, um código de ética terá muito a contribuir para uma correta aplicação do quinto tipo penal previsto na Lei 1.079/1950. Há aqui um excelente motivo para todos, também os ministros do STF, apoiarem a proposta do presidente Fachin.

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