quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Em defesa do instituto do impeachment. Por Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

Impeachment de ministro do STF transformou-se em matéria política, o que é contrário à Lei 1.079/1950 e à Constituição de 1988

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem muito a melhorar; por exemplo, é muito bem-vinda a iniciativa do presidente da Corte, ministro Edson Fachin, de criar um código de ética para os integrantes de tribunais superiores. No entanto, o impeachment não é instrumento político para coagir o STF a mudanças. Ele tem outra função.

Seu âmbito de funcionamento está definido na Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950), que estabeleceu cinco crimes de responsabilidade de ministro do STF: 1) alterar, exceto por recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do tribunal; 2) proferir julgamento, quando seja suspeito na causa; 3) exercer atividade político-partidária; 4) ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; 5) proceder de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções.

Primeiro ponto sobre esses cinco tipos penais: o legislador não previu crime de hermenêutica. Não se pode afastar do cargo um ministro do STF em razão do conteúdo de suas decisões. Por mais que a atividade jurisdicional desagrade parcela majoritária da população, isso não é motivo, segundo a Lei do Impeachment, para afastar um integrante da Corte.

Segundo. Nenhuma das hipóteses da Lei 1.079/1950 trata de temas que demandam análise política. Os cinco crimes de responsabilidade da Lei do Impeachment referem-se a aspectos comportamentais dos integrantes do STF, aptos a serem verificados objetivamente. Esses cinco tipos penais protegem bens jurídicos objetivos; fundamentalmente, a independência e a imparcialidade do sistema de Justiça.

Conclui-se desses dois pontos: segundo os próprios tipos penais da Lei 1.079/1950, o impeachment de ministro do STF não é matéria para pautar eleição para o Senado. O instituto do impeachment existe para proteger o funcionamento do Judiciário, não para submetê-lo às opiniões políticas do momento.

Concorde-se ou não com as decisões do Supremo, há algo profundamente disfuncional quando o debate sobre a próxima composição do Senado se concentra em facilitar a remoção de ministros do STF. É sinal de que um instrumento de proteção do regime republicano está sendo usado para reduzir, ou mesmo retirar, a independência do Judiciário. Há, portanto, que admitir: mesmo controvertida, a decisão liminar do ministro Gilmar Mendes não foi absurda. A tutela de urgência tinha fundamento.

Impeachment de ministro do STF transformou-se em matéria política, o que é contrário à Lei 1.079/1950 e à Constituição de 1988. Na discussão sobre a remoção de integrantes do Supremo na próxima legislatura, não há nenhuma análise sobre o enquadramento da conduta dos magistrados aos tipos penais previstos na lei. Fala-se tão somente da indignação com a atuação da Corte e das condições políticas para retirar seus membros. De forma escancarada, a possibilidade de impeachment passou a servir de ameaça. Instaurou-se a confusão: há até quem pense que faz parte da democracia brasileira submeter o Judiciário a escrutínio popular.

Talvez alguém questione: mas a Lei do Impeachment existe desde 1950 e só agora o ministro Gilmar Mendes viu a necessidade de fazer reparos em seu rito? Ora, a lei é também o uso que se faz dela. A Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) não vinha causando maiores problemas, até o presidente Jair Bolsonaro usála para perseguir opositores políticos. Ficou, então, evidente sua incompatibilidade com a Constituição de 1988.

O rito da Lei 1.079/1950 é falho. Sendo a função do Supremo contramajoritária, o cargo de um ministro do STF não pode ficar à mercê de uma maioria simples do Senado. De toda forma, até pouco tempo atrás, essa brecha não havia sido instrumentalizada para perseguir integrantes da Corte. Inconformados com a atuação jurisdicional do Supremo, grupos políticos tentam agora usá-la não apenas para ameaçar magistrados, mas como tática eleitoral, como se pudessem produzir uma Corte à sua imagem e semelhança.

Uma observação. Essa turma não ficará satisfeita com retirar Alexandre de Moraes ou Dias Toffoli. No momento em que perceberem que conseguem remover um ministro do STF em função de decisões que lhes desagradam, vão querer reformar todo o tribunal. Será o fim da independência judicial.

Talvez alguém rebata: mas o problema não são as decisões do STF; há ministros agindo “de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções”. Será mesmo esse o ponto? A grande indignação com Dias Toffoli, por exemplo, não é por causa de viagem em jatinho particular, e sim por suas decisões no âmbito da Lava Jato. Com Alexandre de Moraes, o mesmo. A revolta é por sua condução dos inquéritos e processos.

Eis a importância da iniciativa do presidente do STF. Mais do que eleger um Senado com sangue nos olhos contra o Supremo, que não respeitará a independência do Judiciário, um código de ética terá muito a contribuir para uma correta aplicação do quinto tipo penal previsto na Lei 1.079/1950. Há aqui um excelente motivo para todos, também os ministros do STF, apoiarem a proposta do presidente Fachin. 

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