Hoje não é sábado, mas escrevo sobre política
porque é domingo de manifestações contra o Congresso, também em Salvador, minha
cidade. A pauta trata dos temas da anistia e da dosimetria como se fossem uma
coisa só, o que, no contexto do atual debate político, já me parece ser grosseira
mistificação. Mas não será esse o tema aqui e sim o tom que a esquerda
governista (que banca as manifestações) adota ao escolher o Congresso como alvo.
Na noite da véspera, já bem tarde, tive contato com um dos muitos materiais de
divulgação do ato. A imagem de um caminhão repleto de ratos engravatados (o
trio elétrico “inimigos do povo”) antecede um vídeo muito bem trabalhado em IA,
em que uma figura de cantora mimetiza a ministra Margareth Menezes e canta uma
paródia inteligente e de suposto bom humor.
A imagem do caminhão de ratos a retratar o
Congresso, se isolada, poderia ter me levado a pensar que se tratava de mais uma
manifestação de ódio a instituições políticas, hábito de campanhas da
extrema-direita em redes sociais. O apelo ao tema da corrupção para atacá-las é
demagogia das mais frequentes naquelas bandas e a metáfora dos ratos é antiga e
rima, inclusive ao pé da letra, com Lava-Jato.
O clip musical na sequência não permitiu o engano.
Era propaganda da esquerda governista e não da oposição de extrema-direita. Nas
imagens e na letra da música repete-se o dito na faixa que nomeia o caminhão, mas,
para combater os ratos, artifícios da inteligência oferecem à audiência as
figuras de três ministros do STF e de dois políticos, todos escolhidos a dedo,
embora não necessariamente bem escolhidos. Flavio Dino, para atender à esquerda
adversativa, Carmen Lucia para expressar a conduta incorruptível de juízas guerreiras
e Alexandre de Moraes para atender a demanda justiceira por homens fortes, que
não é privilégio de nenhum espaço da geografia ideológica. É significativa, num
material de divulgação de um ato em que a conduta não republicana de pessoas
públicas é tão criticada, que o ministro Moraes seja um herói enquanto o presidente
do STF não está entre os aclamados, no momento em que luta para convencer seus
pares de que o tribunal precisa de um código de conduta. De políticos aparecem
dois, o deputado Glauber Braga (exceção militante, guerreira, que permite
mostrar um contraste em ato com a odiosidade dos que são a regra) e o senador petista
Humberto Costa, antes que algum aventureiro lance mão da exceção que se destina
à facção da elite politica não assumida como tal.
Cheguei a criticar minha falha de memória ao
não perceber a hipótese de que as impressões digitais proviessem do outro lado
da nossa geografia política. Se estivesse em dia, a memória acessaria a famosa
alusão de Lula, em 1990, ao Congresso como conjunto de 300 picaretas. Agora são
mais de 500 deputados e 81 senadores, mas esse número é o único dado novo. A
opinião, no lado lulista, parece permanecer depois de décadas, de quase três
governos do chefe e da passagem de muitos petistas por relevantes funções no
Poder Legislativo. A imagem do caminhão de ratos retrata e atualiza o desejo
autoritário de cancelar o Congresso. Atualização da IA de velhos tempos por uma
de última geração.
Antes que governistas atentos tentem me
alcançar com críticas morais para mudarem de assunto, concedo-lhes uma palavra
explicativa, embora, de tão óbvia, seja desnecessária a quem lê de modo isento
o que escrevo. Penso que a composição do atual Congresso é ruim e não tenho a
menor disposição de me comprometer com seus erros e trapalhadas coletivas,
muito menos com transgressões éticas e delitos de parlamentares
individualmente, não importa a facção política a que pertençam, nem se eles seguem
script de herói ou de vilão. Mas
tenderei a me indispor com tentativas de desqualificar a instituição. É exatamente
isso o que faz o slogan “Congresso, inimigo do povo”. Sejam bons ou maus - a meu juízo, ou até
mesmo a juízo coletivo de numerosos cidadãos - são todos eles seus
representantes.
Com essa má disposição passei hoje pelo Farol
da Barra, às 8 da manhã, duas horas antes da hora marcada para o ato anunciado.
Deparei-me com um paredão de 8 trios elétricos (foi o número que contei, mas me
disseram terem sido apenas 6) passando som, uma parafernália estridente que
naquele instante preparatório competia pela ocupação dos ouvidos dos que se
exercitavam, como eu, ou eram apenas transeuntes em busca de um céu azul, sol e
mar calmo de uma quase baía. Reverberavam uma agressividade sonora ensurdecedora,
assediadora, sob os olhos protetores de soldados transportados por dezenas
(sim, isso mesmo, contei mais de duas dezenas) de carros de polícia de quase
todos os tamanhos. Ambiente tóxico demais para o que eu pensava ser o preparo
de um ato cívico-político.
Imaginei então como, duas horas depois, aquele
ambiente insólito para os fins em razão dos quais eu supunha estar sendo
montado, viraria palco para outro tipo de performance. Certamente aquela
agressividade iria para embaixo dos tapetes das fontes que supostamente haviam financiado
os trios para a alegria e pagado os policiais para a segurança da
"festa" da democracia do "nós contra eles". Sobrariam slogans entre beijos
gratuitos e mensagens demagógicas, melosamente suaves, de reverência ao povo e
às suas raízes. A forte emoção dos impropérios indignados com santa ira seria
guardada para alvejar os "inimigos" desse povo que a chefia e a
militância chapa branca dizem amar e, por isso, lhe ofereceriam, como se fosse
circo, um desfile de pessoas crentes no seu pertencimento a uma falange do bem,
que reduz a política a um entretenimento aclamativo de uma interminável relação
amigo-inimigo.
É provável que tudo isso tenha realmente
acontecido no ato, mas o que eu julgava ter sido a sua preparação foi apenas
produto da minha imaginação mal humorada e indisposta com o tom cancelador da sua
convocação. Horas depois dessa experiência, soube que estava enganado. A
concentração de trios e o aparato policial não se destinavam ao ato e sim a um
show de final de ano promovido por uma emissora de rádio da cidade para
comemorar seus 5 anos de vida. O ato parece que foi pequeno mesmo.
Parei para pensar e a minha aversão política
convicta converteu-se em noção de um desagrado estético com a má qualidade e a
impertinência agressiva do som que estava sendo passado no Farol e quase nada
mais. Noves fora isso, tudo certo. Seria um evento festivo realmente,
antecipadamente marcado para dar tempo a quem soubesse e não gostasse do
programa, procurar passar o domingo em outro lugar. Suponho que tenham
respeitado posturas municipais, o que, aliás, não é certo que ocorreu.
Mas como quase também é mais um detalhe, a má
impressão sobre a atitude política que guiou a convocação do ato não iria
morrer assim. O diabo continuava lá, morando nos detalhes daquele vídeo que
reproduz a estética política olavista, como lembrou um amigo atento. Fiquei
pensando nos sentimentos negativos e opacos que esse tipo de polarização pode
incutir nas pessoas, inclusive em mim, que às vezes me acho vacinado contra o contágio
de predisposições como a de hoje. Elas libertam a imaginação e destilam emoções
que prendem a razão numa gaiola de convicção. Esse é, sem dúvida, um problema
importante que está deixando o país politicamente doente, daí publicar o meu
engano.
Depois de viver, antever e imaginar tanta
coisa, provavelmente a caminhada de hoje não me fez bem ao corpo, muito menos
ao coração. Mas fez bem ao espírito oprimido e temporariamente derrotado, ler,
ao chegar em casa, um artigo de Ruy Castro intitulado “Esculturas de gelo” (FSP/UOL,
13.12.2025). Ele me deu alguma esperança num porvir que não testemunharei. Um
porvir em que se derretam as atuais estátuas congeladas de nossa vida pública. Sem
dar spoiler do texto, faço um esboço da esperança dada.
Pode ser que alguém tenha ido à rua hoje, em
Salvador ou em outra cidade, levando um gravador singelo e clandestino que
capte, em meio aos impropérios, à demagogia e à mediocridade reluzente, algum
som perdido calmo, natural e apenas bonito, como o de Nara Leão e o mostre,
daqui a 40 anos, a quem quiser ouvir e se deleitar, refletir e conversar sobre
esse presente que então terá passado.
Outra pessoa muito próxima, que leu minhas
indisposições com o ato, não se fixou no vídeo da véspera nem nas cogitações
imaginativas do meu programa matinal e, estranhando, argumentou comigo que no
ato de hoje estariam muitas pessoas que foram também aos comícios das Diretas
Já, do Fora Collor e da campanha de Lula de 2002. Para essa pessoa trata-se de
uma mesma viagem. Acredito que não.
Duas viagens
As três são lembranças que a esquerda oficial
atual ao mesmo tempo cultiva e perverte, introduzindo, na estética dos atos de
hoje, a gramática estúpida do confronto, que estimula a violência que diz
combater. Mas essa história tem nuances e há uma diferença relevante entre dois
tempos distintos.
Até as Diretas e a Constituinte, a história
do campo democrático era outra. Transmitia mensagem agregadora, de política
positiva, usando conjunções aditivas ao lado de adversativas, claro, porque,
afinal, havia uma ditadura a combater. Mas não era só combate. Buscava-se sempre
aliados novos para persuadi-los à construção de um mundo em comum entre
vencedores e vencidos, em vez de se buscar culpados para justiçar e excluir do
mundo dos vencedores. Proposta de anistia,
em vez de acerto de contas. Como perdão sem esquecimento, em vez de vingança
contra lembranças sem perdão.
Desse tempo de luta e de construção, em que
se usava "ou" e também se
usava "e", a memória da esquerda oficial preservou as greves do ABC,
a fundação do PT e a campanha das
Diretas Já, momentos de coroação de um artesanato político que começou uma
década antes disso, na construção cotidiana da democracia dentro dos sindicatos
sob intervenção policial, dos diretórios estudantis limitados pelo decreto 477,
da imprensa submetida a censura do regime, do Congresso e do Judiciário
oprimidos pelo AI5, as cassações de parlamentares e a aposentadoria compulsória de juízes. Tudo
o que juntava uma esquerda positiva ao centro liberal democrático e dividia aos
poucos uma direita que, a partir da segunda metade dos 70 ia passando, graças a
esse artesanato, do campo autoritário para o democrático.
O MDB foi a oficina mais importante, mas
nunca foi uma máquina partidária solitária ou autárquica. Suas vitórias
eleitorais, raras no início e exuberantes ao final do processo, eram o
indicador de que era aquela a trilha segura para a democracia. Quanto mais
forte, menos bélico e mais agregador se tornava. O PCB foi a parte da esquerda de
mais interação e responsabilidade com aquele, nessa parte da história.
Naquele momento também havia uma outra
esquerda, que desprezava a política e seguia a lógica da guerra. Tentou o
caminho das armas e não apenas perdeu no terreno militar - porque a luta, aí,
era desigual - como também no terreno político, porque tinha um argumento
autoritário, que reforçava o do adversário, em vez de o enfraquecer e isolar.
Lutavam contra uma ditadura defendendo uma outra, a do proletariado.
Desprezavam a democracia, que consideravam uma instituição
"burguesa".
O lado obscuro da lua está hoje iluminado por
holofotes oficiais e ganhou narrativa fake. Mariguella e outros heróis
da luta contra a ditadura da burguesia e a favor da ditadura do proletariado foram
repaginados como heróis da democracia. Passaram a fazer parte da memória
oficial da luta democrática, graças a uma narrativa enviesada, chancelada por
ex-guerrilheiros que se tornaram políticos poderosos,
Esse tipo de revisionismo histórico,
patrocinado pelo poder, iluminou o lado obscuro da lua e excluiu da história
reconstruída pelos vencedores aquele artesanato cotidiano da luta democrática
que levou, cumulativamente, à Anistia em 79, à eleição direta dos governadores
em 82, em seguida, aos comícios das Diretas Já para presidente em 84, depois ao
fim do regime militar no Colégio Eleitoral de 85 e à refundação da democracia,
com a Carta de 88.
Como se operou a proeza ilusionista que
secundarizou tudo isso e quase subtraiu essa história honrosa e construtiva ao
conhecimento das novas gerações de brasileiros? A esquerda adversativa, depois
de derrotada na guerra de guerrilha, aderiu à política, começando pela campanha
do voto nulo, passando ao voto em "candidatos populares" avulsos, até
encontrar no PT, que ela ajudou a fundar, um porto adequado para sua adesão
meia-boca à política. Foi um avanço, mas
o ranço antipolítico ficou. O rabo de fora do gato escondido nunca deixou de
aparecer, como na expulsão do partido de deputados que foram ao Colégio Eleitoral
ajudar a dar fim à ditadura, como na recusa partidária a assinar a Constituição
de 88 e como no já mencionado anátema lançado por Lula contra o Congresso como reunião
de 300 picaretas.
No Fora Collor (1992) já havia uma
mistura. Embora muita gente tenha ido à rua com a mesma generosidade cívica dos
comícios das Diretas, já estava presente também uma aversão à política dos
(outros) partidos e uma idolatria à "sociedade civil". Já estava
inoculado o vírus de um social a ser defendido contra a política e não através
dela. O “fora isso, fora aquilo” já era o dedo do PT, um desejo de excluir
adversários que, com o tempo, veio a se tornar um legado e contribuição à nossa
cultura política.
E assim a coisa foi indo, indo e fazendo aqui
e ali concessões a uma retórica de paz e amor, mas tanto fez que a esquerda
adversativa conseguiu voltar a propor, quatro décadas após a luta armada, a
lógica da guerra, agora eleitoral, no lugar da política pluralista. Ela se expressou
de modo bruto na campanha pela eleição de Dilma Rousseff em 2014. Um
estelionato eleitoral para tentar refratar a onda de insatisfação que tomara as
ruas em 2013 a partir de um protesto estudantil. Nenhuma teoria da conspiração
apagará da experiência nacional aquele marco inicial do buraco agonístico em
que estamos metidos até hoje.
A esquerda negativa e adversativa sofreu um
efeito bumerangue com a Lava-jato porque afinal a direita aproveitou a
insatisfação social para entrar em modo guerra também, levando de roldão nessa
onda o PSDB. Um ano depois daquela eleição fatídica, em que a presidente
prometeu (e cumpriu) "fazer o diabo" para não perder, não havia mais
sombra daquele partido de oposição civilizada de centro com o qual Lula teve a sorte
de competir nas urnas e de contracenar durante seus dois primeiros governos.
Tempo em que precisou do apoio do PSDB e obteve, para votar a reforma da
previdência que lhe permitiu governar equilibrando o caixa que ele mesmo se
encarregaria de começar a afundar na segunda metade do seu segundo governo.
Complacência do centro tucano, que se manteve moderado até no tempo do mensalão
e nas campanhas de 2006 e 2010, quando seus candidatos (Alckmin e Serra)
evitavam fulanizar as críticas e até chegaram a aparecer no horário eleitoral
admitindo a Petrobrás como exemplo de sucesso nacional. Era uma oposição com baixo teor de
maniqueísmo e mesmo quando o maniqueísmo se aguçou, no embate feroz de 2014
contra uma presidente "virada no diabo", a aliança de Aécio Neves foi
à esquerda, com o PSB de Eduardo Campos e com Marina Silva.
Toda essa civilidade social-democrata com que
o antigo PSDB competiu com o PT - seja no tempo em que era governo e o PT lhe
fazia oposição enfurecida (vale lembrar o Fora FHC, em 99, apenas dois meses
após as eleições), seja quando o PT chegou ao poder montado num discurso mais
ao centro - desapareceu quando o PSDB
aderiu e passou a ser coadjuvante em gradativa aliança da centro-direita com a
direita liberal radical, animada e vitaminada por ventos antipetistas que
sopravam nas ruas desde 2013, passando batido por ouvidos moucos da esquerda,
perdida no interesse em conservar e perpetuar um arranjo de poder corrupto, que
sustentava com a banda mais populista e fisiológica das direitas.
Com a queda de Dilma por absoluta
ingovernabilidade, o PT resolveu sustentar sua aposta anterior numa lógica de
guerra e construiu a falsa narrativa do impeachment como golpe. Deu
certo apenas para que a performance de vítima atraísse o apoio passivo
de um eleitorado de centro-esquerda que, por falta de lideranças enérgicas
nesse campo político, perdera a memória das lutas democráticas dos 70 e 80.
Isso, mais a perda de bússola do restante do
centro e a resignação prática de quase toda a direita à hegemonia bolsonarista,
assegurou ao PT o lugar de única oposição relevante a uma extrema-direita que
rapidamente se tornara uma alternativa de poder a partir de uma disputa com o
mesmo PT pelo lugar de oposição mais feroz ao governo Temer. Disputa que acabou
empatada graças à ação demolidora da Lava Jato. Aquela operação, depois
de ter dado gás providencial à queda de Dilma, com tratamento arbitrário e
demagógico do problema sério e real da corrupção na Petrobrás, voltou suas
baterias para o governo Temer, eliminando as chances de um entendimento de
transição política naquele momento.
Estavam constituídos e confrontados, no
segundo turno das eleições de 2018, os dois polos beneficiários da prevalência
da lógica da guerra sobre a da política. E cá ainda estamos até hoje, numa
mixórdia já agora resultante das decisivas digitais da extrema-direita, que não
tinha espaço nos tempos das alianças democráticas, em que vigorava a lógica da
política e não a da guerra. Todo um contexto internacional não pode deixar de
ser trazido à consideração como fator agravante e relevante, mas isso não
impede que se aviste o papel decisivo que teve esse giro interno da política
plural para a pura e simples guerra eleitoral. A esquerda adversativa de hoje
já não prega uma ditadura do proletariado, promovida por uma vanguarda
revolucionária. É sectária, mas não é louca nem rasga votos ou dinheiro. Mas o
que chama de democracia não se afasta muito da imagem de uma ditadura do povo,
guiada por um chefe populista respaldado por um aparelho partidário que ao
mesmo tempo respalda-se nele.
Com essa
descrição não pretendo dizer que o atual governo é só isso. Seu perfil
heterogêneo permite uma ambiguidade que ainda o situa no horizonte de preferências
de democratas de diversas filiações. Essa ambiguidade é compatível com o perfil
atitudinal do presidente. Mas como não há programa nem confiança mútua nesse
ajuntamento apenas pragmático e pouco cuidadoso com ritos institucionais, a
interação entre o presidente e seu partido é a única relação estável que não
exige barganhas constantes. O resultado é que apesar da retórica de frente
democrática, nem uma frente de esquerda plena o governo consegue expressar.
Lula flutua sobre um governo de alma líquida e cabeça lulo-petista.
Um país
entregue a essa liquidez manejada por uma mentalidade hegemonista e patrimonial
e com uma oposição até aqui incapaz de se livrar de uma sombra extremista tem o
seu futuro imediato lido em duas chaves, a depender do polo em que se formula a
solução: liberdade para o mito que está preso ou sua reconstrução pelo outro
mito, após um prazo mais longo de tratamento de uma herança maldita.
O problema
desse raciocínio é que se prende a uma ficção. Não haverá essa disputa no mundo
real. A direita recicla-se e busca nova carta para seguir jogando sem o mito
preso. No centro do espectro político há espaços, no eleitorado, para programa e
candidatura de oposição democrática, distintos do campo imantado pelo bolsonarismo.
Somente na esquerda e centro-esquerda a situação está até aqui congelada. Devem
marchar juntas, só não sabemos ainda se em aliança mesmo ou se por gravidade, o
que não importa a quem crê que o poder resolve todos os problemas. Mas o fato de
a realidade objetiva ser essa não impede que, no plano simbólico, a luta entre
os dois dragões da maldade e respectivos santos guerreiros continue como se,
entre 2022 e esse quase 2026, o Brasil tenha vivido uma era glacial.
Como em política
não se deve desprezar a força do simbólico, penso que essa luta particular,
vendida como a questão nacional, deve continuar a ser analisada. Nela, a
vantagem ainda é do mito que se encontra em liberdade. Além dessa, nada desprezível,
a vantagem é dupla. Está no poder e tem um passado a alegar como base da
reconstrução que anuncia, como anunciava em 2022. Mas as dificuldades existem e
também são duas, que se completam: o passado não retorna e Lula governa sem
horizontes.
*Cientista político e professor da UFBa

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