O Globo
Valorizar uma menina, desde tão pequena,
ajuda a construir uma adulta com boa autoestima e confiante para ir atrás do
que deseja
Tenho uma filha. Ela se chama Beatriz e tem 5
anos. Uma das coisas que desenvolvi ao longo da jornada da paternidade foi a
habilidade de tentar ver o mundo a partir dos olhos dela. Isso me fez crescer
como pessoa e como homem. Também trouxe algumas reflexões, que hoje gostaria de
compartilhar.
No Dia da Criança, dei a ela uma bicicleta linda. Pesquisei, juntei dinheiro para comprar, montei e fomos para o parque andar. Aí surge um pensamento intrusivo: dados do Strava, de 2023, revelam que, no mundo, mulheres passam 55% menos tempo pedalando que os homens. No Brasil, esse número chega a 37%, em linha com a disparidade de gênero observada globalmente. Um dos motivos relevantes para essa diferença é o assédio e a importunação sexual. Segundo o Perfil do Ciclista Brasileiro de 2024, pesquisa realizada pela Transporte Ativo, em São Paulo 65,7% das mulheres, e em Belém 67,7% já sofreram algum tipo de agressão ou importunação enquanto pedalavam. Então, será que realmente vale a pena ensinar algo que ela dificilmente usará quando estiver mais velha?
Ela acabou de se formar no ensino infantil e
foi a única criança que ganhou um buquê de flores. Quando cheguei com o
presente, a surpresa foi geral, inclusive minha, de não haver mais ninguém com
o mesmo gesto. Bia recebe flores desde que fez 1 aninho, e todo ano é assim.
Acho muito sintomático e representativo ter se tornado fato tão raro. Valorizar
uma menina, desde tão pequena, ajuda a construir uma adulta com boa autoestima
e confiante para ir atrás daquilo que deseja, sem se contentar com qualquer
coisa.
Uma sociedade que não olha para essas
crianças verdadeiramente torna suas vidas descartáveis, e tragédias são
visíveis diariamente.
Aí, Andressa, em 2021, cai da bicicleta
depois de um homem passar a mão nela enquanto trafegava na rua. Em agosto deste
ano, outro homem desferiu 60 socos na Juliana dentro de um elevador. Dos casos
mais recentes, tivemos como vítimas Tainara e Evelyn, infelizmente. Em 2024, o
Brasil bateu recorde de feminicídios: 1.492 casos.
Falamos de um país onde a tese da legítima
defesa da honra do agressor depois de uma suposta traição — usada para
justificar crimes contra mulheres, como o feminicídio — foi oficialmente
retirada do sistema jurídico apenas em 2021.
No ano passado, a pena para feminicídio foi
aumentada para 20 a 40 anos de reclusão pelo Pacote Antifeminicídio, que também
criou novas agravantes (como a prática durante a gestação ou na presença de
filhos) e trouxe exigências mais rígidas para progressão de regime, endurecendo
o tratamento penal para esses crimes contra a mulher.
Precisamos, porém, atuar nas duas frentes: os
crimes têm de ser efetivamente punidos, e as instituições devem funcionar
concretamente, saindo das notas de repúdio das redes sociais. É imprescindível
assumir nossa responsabilidade lá na gênese de tudo, para que a minha pequena
Bia não cresça num mundo sendo sempre uma exceção.

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