DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
A onda de cinismo e corrupção a que temos assistido ao longo dos últimos anos deixa transparecer uma coisa: estamos longe do ideal republicano que, na tradição liberal, encontrou em Immanuel Kant (1724-1804) um dos seus mais importantes formuladores. Direi, na parte final deste comentário, em que pontos o Brasil, em particular, e a América Latina, de um modo geral, se afastaram do ideal republicano apresentado pelo filósofo alemão. Primeiro, destacarei alguns dos seus conceitos básicos.
Immanuel Kant defendia a organização livre dos Estados como fundamento para a paz. Uma estrutura política, para ser sadia, pensava o mestre alemão, deveria se alicerçar no respeito à pessoa humana e ao seu mais prezado direito, a liberdade. Só a constituição do Estado como república garantiria essas duas exigências. Nem o despotismo de um nem o de vários poderiam ser aceitos, pois a vontade pública é, neles, utilizada como se fosse a vontade particular do governante. Nas formas despóticas de organização política, o governo trata o povo como se fosse a sua propriedade.
A Constituição republicana, segundo Kant, é aquela que se encontra estabelecida de conformidade com os seguintes três princípios:
Da liberdade dos membros de uma sociedade enquanto indivíduos;
da dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos;
e de conformidade com a lei da igualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos.
Essa forma de governo é a única que decorre da ideia do contrato imaginário e sobre a qual se devem fundar as normas jurídicas de um povo.
A Constituição republicana, ainda segundo o mestre alemão, além de ter nascido na pura fonte do conceito do direito, tem a vista posta na paz perpétua. Se o consentimento dos cidadãos é necessário para decidir se deve haver guerra ou não, nada é mais natural que eles pensem muito antes de começar um jogo tão maligno.
Para Kant, são essenciais à forma republicana de governo a representação e a separação entre os poderes Legislativo e Executivo. Duas formas de governo tornam impossível a república: o despotismo de um (tirania) e o de todos (democracia da vontade geral). Nessas duas formas de governo é a mesma pessoa que legisla e que executa a lei. Quanto mais reduzido for o número de pessoas do poder estatal e quanto maior for a representação das mesmas, tanto mais aberta estará a Constituição à possibilidade do republicanismo.
Ao longo da última década a maior parte dos países latino-americanos enveredou pelo duvidoso caminho dos "populismos constitucionais", que visam a instaurar regimes que se autoperpetuam com a bênção das suas respectivas sociedades, conduzidas ardilosamente pelos mandatários de plantão a fazer reformas plebiscitárias que garantam a hegemonia dos donos do poder, sem que haja a mínima possibilidade de alternância do mesmo e com a destruição das instituições republicanas - como o funcionamento da oposição, a preservação e o aperfeiçoamento do governo representativo e a liberdade de imprensa.
As estruturas políticas surgidas dessas reformas partiram para a ignorância em relação à pessoa humana e ao seu direito mais prezado - a liberdade -, como está ocorrendo na Venezuela, na Bolívia e na Nicarágua.
O centro motor dessa maré montante é o regime venezuelano, que estendeu os seus tentáculos sobre os quatro cantos da América Latina, financiando com os abundantes petrodólares o maluco modelo da "revolução bolivariana", que tem servido de inspiração para as mudanças que se apresentam aqui e acolá.
A Venezuela de Hugo Chávez transformou-se em foco irradiador da instabilidade regional, em decorrência da louca corrida armamentista desatada pelo truculento coronel. Ele é, atualmente, sem dúvida nenhuma, quem pauta a agenda política do nosso continente.
O Brasil terminou refém desse modelo, notadamente no que tange à escolha dos rumos da política externa, voltada para um populismo esdrúxulo que acaba sacrificando os interesses do nosso país nas fantasias terceiro-mundistas que levaram Lula a prestigiar o presidente iraniano num momento em que ele é seriamente questionado por ignorar as políticas antinucleares assinadas pelas Nações Unidas.
De Lula, de Chávez e dos demais líderes populistas latino-americanos poder-se-ia dizer o que Kant criticava como despotismo de um só ou de alguns, que utiliza a vontade pública como se fosse a vontade particular do governante e do seu séquito de bajuladores. Os vários chefes populistas latino-americanos se unificam nesta negativa caracterização: tratam o povo como se fosse a sua propriedade.
As Constituições republicanas e as práticas políticas que começam a pipocar na América Latina como fruto das "revoluções bolivarianas" em andamento estão sendo estabelecidas de acordo com três antiprincípios que reforçam a velha tradição patrimonialista de gerir o Estado como propriedade particular do governante e que se contrapõem diametralmente aos princípios republicanos apregoados por Kant.
Chávez e companhia partiram, nas suas reformas constitucionais "bolivarianas", da negação da liberdade dos membros da sociedade enquanto indivíduos; da não dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos (pois os governantes de plantão não estão submetidos, nem os seus colaboradores, à lei vigente para todos); e de conformidade com a lei da desigualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos (temos cidadãos de primeira, de segunda ou de terceira, dependendo da sua proximidade da esfera dos donos do poder).
Ricardo Vélez Rodríguez é coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora.
A onda de cinismo e corrupção a que temos assistido ao longo dos últimos anos deixa transparecer uma coisa: estamos longe do ideal republicano que, na tradição liberal, encontrou em Immanuel Kant (1724-1804) um dos seus mais importantes formuladores. Direi, na parte final deste comentário, em que pontos o Brasil, em particular, e a América Latina, de um modo geral, se afastaram do ideal republicano apresentado pelo filósofo alemão. Primeiro, destacarei alguns dos seus conceitos básicos.
Immanuel Kant defendia a organização livre dos Estados como fundamento para a paz. Uma estrutura política, para ser sadia, pensava o mestre alemão, deveria se alicerçar no respeito à pessoa humana e ao seu mais prezado direito, a liberdade. Só a constituição do Estado como república garantiria essas duas exigências. Nem o despotismo de um nem o de vários poderiam ser aceitos, pois a vontade pública é, neles, utilizada como se fosse a vontade particular do governante. Nas formas despóticas de organização política, o governo trata o povo como se fosse a sua propriedade.
A Constituição republicana, segundo Kant, é aquela que se encontra estabelecida de conformidade com os seguintes três princípios:
Da liberdade dos membros de uma sociedade enquanto indivíduos;
da dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos;
e de conformidade com a lei da igualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos.
Essa forma de governo é a única que decorre da ideia do contrato imaginário e sobre a qual se devem fundar as normas jurídicas de um povo.
A Constituição republicana, ainda segundo o mestre alemão, além de ter nascido na pura fonte do conceito do direito, tem a vista posta na paz perpétua. Se o consentimento dos cidadãos é necessário para decidir se deve haver guerra ou não, nada é mais natural que eles pensem muito antes de começar um jogo tão maligno.
Para Kant, são essenciais à forma republicana de governo a representação e a separação entre os poderes Legislativo e Executivo. Duas formas de governo tornam impossível a república: o despotismo de um (tirania) e o de todos (democracia da vontade geral). Nessas duas formas de governo é a mesma pessoa que legisla e que executa a lei. Quanto mais reduzido for o número de pessoas do poder estatal e quanto maior for a representação das mesmas, tanto mais aberta estará a Constituição à possibilidade do republicanismo.
Ao longo da última década a maior parte dos países latino-americanos enveredou pelo duvidoso caminho dos "populismos constitucionais", que visam a instaurar regimes que se autoperpetuam com a bênção das suas respectivas sociedades, conduzidas ardilosamente pelos mandatários de plantão a fazer reformas plebiscitárias que garantam a hegemonia dos donos do poder, sem que haja a mínima possibilidade de alternância do mesmo e com a destruição das instituições republicanas - como o funcionamento da oposição, a preservação e o aperfeiçoamento do governo representativo e a liberdade de imprensa.
As estruturas políticas surgidas dessas reformas partiram para a ignorância em relação à pessoa humana e ao seu direito mais prezado - a liberdade -, como está ocorrendo na Venezuela, na Bolívia e na Nicarágua.
O centro motor dessa maré montante é o regime venezuelano, que estendeu os seus tentáculos sobre os quatro cantos da América Latina, financiando com os abundantes petrodólares o maluco modelo da "revolução bolivariana", que tem servido de inspiração para as mudanças que se apresentam aqui e acolá.
A Venezuela de Hugo Chávez transformou-se em foco irradiador da instabilidade regional, em decorrência da louca corrida armamentista desatada pelo truculento coronel. Ele é, atualmente, sem dúvida nenhuma, quem pauta a agenda política do nosso continente.
O Brasil terminou refém desse modelo, notadamente no que tange à escolha dos rumos da política externa, voltada para um populismo esdrúxulo que acaba sacrificando os interesses do nosso país nas fantasias terceiro-mundistas que levaram Lula a prestigiar o presidente iraniano num momento em que ele é seriamente questionado por ignorar as políticas antinucleares assinadas pelas Nações Unidas.
De Lula, de Chávez e dos demais líderes populistas latino-americanos poder-se-ia dizer o que Kant criticava como despotismo de um só ou de alguns, que utiliza a vontade pública como se fosse a vontade particular do governante e do seu séquito de bajuladores. Os vários chefes populistas latino-americanos se unificam nesta negativa caracterização: tratam o povo como se fosse a sua propriedade.
As Constituições republicanas e as práticas políticas que começam a pipocar na América Latina como fruto das "revoluções bolivarianas" em andamento estão sendo estabelecidas de acordo com três antiprincípios que reforçam a velha tradição patrimonialista de gerir o Estado como propriedade particular do governante e que se contrapõem diametralmente aos princípios republicanos apregoados por Kant.
Chávez e companhia partiram, nas suas reformas constitucionais "bolivarianas", da negação da liberdade dos membros da sociedade enquanto indivíduos; da não dependência de todos em relação a uma única legislação comum, enquanto súditos (pois os governantes de plantão não estão submetidos, nem os seus colaboradores, à lei vigente para todos); e de conformidade com a lei da desigualdade de todos os súditos, enquanto cidadãos (temos cidadãos de primeira, de segunda ou de terceira, dependendo da sua proximidade da esfera dos donos do poder).
Ricardo Vélez Rodríguez é coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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