Saí de casa às seis da manhã, da Gávea, e encontrei até o trabalho três barreiras de policiais fortemente armados revistando os carros. Na véspera, os helicópteros sobrevoaram a Rocinha o dia inteiro. Fui ao aeroporto de tarde evitando caminhos que poderiam ser afetados pela manifestação do Rio contra a mudança na lei de royalties. As duas notícias parecem locais mas são nacionais.
A prisão do chefe do tráfico na Rocinha e a previsão de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela ícone do Rio são promissoras para todos os bairros, seja onde ele se encastelava, seja os bairros do entorno, mas é também uma excelente informação para o Brasil inteiro.
Tráfico de drogas existe aqui e em qualquer lugar do mundo, mas no Rio o que se viu por muitos anos foi a consolidação da ideia de que em certas áreas o poder público não podia entrar; as pessoas, as empresas concessionárias de serviço público só poderiam circular se tivessem a ordem ou a aquiescência dos donos do pedaço. É intolerável no Estado de Direito que haja pedaços do país em que a circulação de pessoas e dos representantes dos poderes constituídos não possa ocorrer por determinação de autoridades estranhas à democrática.
Traficantes foram presos outras vezes, mas um Rio sem pedaços à parte, sem territórios estrangeiros, sem fortalezas inexpugnáveis é o sonho que só agora vai se concretizando passo a passo, apesar de todos os percalços e dores. A batalha do Rio por isso é a luta para que a democracia avance um pouco mais no país. Nesse aspecto o que pode parecer uma notícia local é uma questão nacional de enorme importância, significado e simbolismo.
A manifestação do Rio contra a mudança da lei dos royalties também parece, vista de outros estados, uma questão paroquial de um estado que não quer perder receita ou dividir uma riqueza que tem que ser de todos. Na verdade é mais complexo do que isso.
O ICMS é o mais importante dos impostos estaduais e quanto maior o estado mais relevante é essa fonte para a receita total. O Rio e o Espírito Santo, que juntos produzem quase todo o petróleo que o Brasil consome e exporta, não podem cobrar ICMS desse produto. O carro produzido em São Paulo paga imposto lá. O petróleo recolhe ICMS no estado de destino.
Essa exceção foi criada por temor de que o Rio - e em menor escala o Espirito Santo - recebesse demais dessa riqueza nacional. Em compensação ficou estabelecido que os estados produtores receberiam uma parte maior dos impostos arrecadados através de royalties e de Participação Especial. Foi um acordo feito na Constituição. Um pacto federativo. Esse ponto é sempre esquecido por quem tem defendido a mudança atualmente feita no Congresso.
É importante entender os detalhes da nova repartição aprovada pela Câmara e pelo Senado - e que teve o patrocínio do governo no início do processo. Mas mais importante é ver o cenário geral criado por esse evento: no processo, a maioria dos estados se juntou contra dois deles, e neste caso ser maioria não é ser democrático; é esmagar a minoria.
As manifestações do Rio e do Espírito Santo não têm força para alterar nada e no Rio foram em parte formadas por funcionários públicos com o benefício do ponto facultativo. Isso não diminui a força do argumento de quem está chamando a atenção para o absurdo jurídico que é alterar regras estabelecidas anteriormente, refazer o que está acordado em contratos, criar a desordem fiscal nos estados produtores.
O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, optou pela estratégia de confiar na palavra do governante, em vez de explicar mais detidamente ao país o que isso representa. Fez mal porque ainda que o governante tenha o poder de veto, o que realmente está em jogo é a harmonia entre os estados. Os não produtores estão convencidos de que agora é que se faz justiça porque afinal o petróleo é de todo o Brasil e a riqueza precisa ser mais bem distribuída.
Ela é. O petróleo brasileiro gera recursos para a União, que os distribui aos estados na razão inversa da capacidade de arrecadação própria de cada um. Os estados não produtores têm benefícios de uma parte dos royalties e ainda a grande vantagem de poder recolher o ICMS do petróleo que é produzido no Rio e no Espírito Santo.
O que se abre com essa lei é a possibilidade da pilhagem de um estado pela maioria dos entes federados. Sempre que um estado tiver uma riqueza os outros poderão fazer o mesmo agora: usar a sua maioria para aprovar leis que revoguem o que tiver sido estabelecido ou negociado.
Eu nasci em Minas e moro no Rio. O grande produtor de minério de ferro é Minas Gerais. Mesmo após a exploração de Carajás, as terras de Drummond ainda são as que mais fornecem os minérios que têm ajudado extraordinariamente a nossa balança comercial nos últimos anos de explosão dos preços. Não por ser mineira, mas por analisar os fatos acho que Minas deve ser ouvida quando fala em aumento dos royalties, mas principalmente acho que as empresas que atuam em mineração em qualquer estado têm que ser mais cobradas na contrapartida ambiental porque a atividade tem um impacto excessivo no meio ambiente.
A questão não é bairrista. O Brasil decidiu ser uma República Federativa e Democrática. Nos dois fatos de ontem é essa escolha que está em questão. A democracia se fortalecerá com a recuperação de todas as áreas ocupadas por traficantes. A federação só será possível com harmonia entre os estados federados. O Rio não pode ser punido por ter petróleo.
FONTE: O GLOBO
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