Partidos secundários se conformam com a função impolítica de vendilhões de
apoio
O peculiar modo como se deu o desenvolvimento político do Brasil, a partir
da sociedade escravista que fomos durante largo tempo, impregnou nosso sistema
político de anomalias que tolhem nosso caminho para a democracia. Sobretudo
porque aqui não é incomum que partidos se oponham à política enquanto meio de
expressão democrática da vontade coletiva.
Um compreensível fetichismo do voto cerca nossa concepção de eleições, na
suposição, nem sempre correta, de que votar é democratizar. Não há como
instituir democracia sem voto, mas há como ter voto e não ter democracia. Ainda
nestes dias, ouvi de colegas, nos corredores do recinto em que se realizou a Reunião
Anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais)
amargas e preocupantes considerações sobre como se manipulam os cenários e as
circunstâncias eleitorais em nossas universidades. Tanto no meio estudantil
quanto no meio docente, para simular maiorias e anular a vontade eventual das
maiorias verdadeiras. Uma cultura do golpismo se implantou no País e se
disseminou por diferentes instâncias de uma sociedade que, após duas décadas de
autoritarismo, estava sedenta de democracia. Ditadura ruim é a dos outros.
Não temos, na verdade, larga e consolidada tradição de voto. No período
colonial, votava uma minoria, os chamados homens bons, puros de sangue e de fé,
por um sistema que combinava eleição e sorteio. As câmaras municipais, que tinham
composição completamente diversa da de hoje, listavam nomes e os encerravam em
diferentes pelouros de cera de abelha que eram sorteados na ocasião própria de
escolha da nova câmara. Não era incomum que os designados para as funções do
bem público procurassem evadir-se das obrigações. Acabavam a elas forçados sob
penas gravíssimas, a mais comum das quais era a multa e o encarceramento na
enxovia, verdadeira pocilga municipal, por 30 dias. O oposto de hoje, em que os
numerosos candidatos a edil mostram-se ansiosos pelo assento na câmara, e pelas
mordomias correspondentes, com exceção talvez daqueles que, em número não
pequeno, como nestas eleições e em muitos municípios, surpreendentemente não
obtiveram nenhum voto. Supostamente, nem sequer votaram em si mesmos.
No Império, o voto estamental herdado da dominação colonial, o que
distinguia os chamados homens de qualidade dos seres servis e de trabalho, e a
eles circunscrevia os limitados direitos políticos de então, foi regulado e
modificado pelo quantitativo. Qualificavam-se os eleitores e os candidatos em
função de seus cabedais, numa gradação que ia da máxima riqueza nas eleições
gerais a cabedais menores nas eleições locais. No limbo do sistema eleitoral
diminuto ficavam os escravos e os ínfimos em geral, categoria na qual, na
prática, se incluíam as mulheres. Mas, ao menos, passaram a existir os partidos
políticos, na verdade dois, o Liberal e o Conservador, dando certa direção
ideológica à manifestação da vontade política dos poucos que a ela tinham direito.
Alternavam-se no poder na estranha dialética que nos governaria pelos tempos
vindouros e de certo modo até os dias de hoje: os liberais (que nos tempos
atuais têm nomes esquisitos, como o de socialistas, revolucionários, radicais,
menos o de liberais) propõem as mudanças políticas e os conservadores (que
também têm nomes esquisitos, como o de sociais, liberais, democráticos,
trabalhistas) as executam. No fundo, e não estou fazendo ironia, aqui a direita
parece ser de esquerda e a esquerda parece ser de direita. Trastrocam-se e
ninguém reclama.
A democracia socialmente restritiva avançou pela República. Só lenta e
gradualmente estendeu os direitos políticos a categorias que ficaram deles
excluídas desde o início do regime, como os pobres, os analfabetos, as mulheres
(que só puderam votar a partir de 1932, mais de 40 anos após a proclamação da
República). Só com a Constituição de 1988 todos os brasileiros, a partir dos 16
anos de idade, passaram de fato a ter direito de voto.
Um fenômeno, que se observa sobretudo a partir da redemocratização de 1946 e
se revigorou na redemocratização de 1984, é a proliferação de partidos
políticos sem perfil ideológico ou doutrinário nítido. Mais associações de
interesses na loteria do poder do que propriamente na representação política do
povo. O que parece ser sadia indicação de democrática pluralidade de ideias tem
se revelado muito mais antidemocrática falta de ideias. Tornou-se mais
importante ser votado sem ganhar eleições do que ganhá-las. A política de
coalizões é a principal evidência dessa tortuosa via da governação, o partido
eleito convertido em refém dos partidos intersticiais e secundários que se
conformam com a função impolítica de parasitas do poder, vendilhões de apoio
como se viu no caso do mensalão. A arquitetura partidária já é montada para
descumprir as funções propriamente eleitorais e políticas. Aqui, partido e
política se opõem, o que, no fundo, regula nossos desapontamentos e desacertos.
José de Souza Martins - é sociólogo,
professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor, entre outros, de A Política
do Brasil Lúmpen, Místico (Contexto
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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