Uma noite despertei atordoada, com o coração batendo, assustada, os sinos repicando. Meu pai estava diante de mim com o candeeiro numa mão e um jornal na outra. Por trás dele o vulto grande de minha mãe, envolto em um lençol branco. Os olhos azuis de meu pai, o lume refletido em cada pupila brilhante... Havia água nos olhos de meu pai! Mas seus lábios sorriam!
- A guerra acabou! A guerra acabou! Ande, soletre, soletre minha filha: p... a... z!!! Disse, por fim. Três grandes letras vermelhas que tomavam toda a primeira página do jornal, em sentido diagonal. Nos levantamos todos e fomos para a igreja. Já muita gente transitava pela rua escura, rumo ao único ponto luminoso, para rezar e agradecer a Deus o fim da guerra.
As lágrimas de meu pai, naquela madrugada de maio, foi a primeira e mais real mensagem de paz que recebi e que me fez aos seis anos e definitivamente, conceber a paz como uma coisa boa e a guerra como uma coisa ruim.
Com o fim da guerra, os soldados que se encontravam acampados na Ilha, se foram. As moças choraram. Algumas haviam se casado.
Outras ficaram solteiras para sempre, com saudades da guerra, sem entender a paz! E com a paz, chegou também o inverno. O nosso inverno triste, chuvoso. Haviam se apagado há muito os últimos dias brilhantes de abril. Agora eram as chuvas de maio, com sua rotina molhada, quebrada só pelas novenas de N.Senhora e uma ou outra noite de estrelas.
Em junho, depois que se apagavam as fogueiras de São João, a Ilha mergulhava na mais completa escuridão. Quem vinha de Jaguaribe, pela Rua Padre Machado, preferindo as calçadas para evitar a areia grossa do meio da rua, podia ver, no fundo das casas, as luzes amarelas e opacas dos lampiões. Na casa da professora, alguém fazia crochê. O padre, na cadeira de palinha, com a cabeça muito reclinada para o lado, lia o breviário. Pela calçada passava um vulto assobiando uma música de Noel Rosa.
Nas noites de lua, muitas famílias ficavam sentadas na calçada até as nove da noite, conversando ao cheiro dos jasmins pendurados nos portões. Às dez, era a hora que Zé Muriú virava lobisomem e todo mundo entrava em casa e trancava as portas. Muita gente não acreditava. Mas, pelo sim ou pelo não era melhor não arriscar.
Diziam que nas noites de lua cheia, ele vinha lá dos lados da Baixa Verde, por baixo dos coqueiros, zurrando, de quatro pés, metade homem, metade bicho. Havia quem jurasse já havê-lo visto. De dia, no entanto, era um pobre diabo inofensivo e coberto de trapos. Pedia comida pelas portas e, segundo se dizia, mantinha um romance secreto com uma cabrita que pastava numa campina ao lado da igreja.
Julho era o mês dos ventos que se prolongavam até princípios de agosto, surrando a copa dos coqueiros que se curvavam gemendo.
Muitos eram arrancados pela raiz. O mar estrebuchava querendo comer a terra. Da minha esteira com cheiro de pulga eu escutava os ruídos do mundo e da noite lá de fora. Nessa época do ano o mar ficava sujo, cheio de sargaço e as dunas de areia se levantavam, brancas, cobrindo a nossa porta, como grandes bolos confeitados.
Se metia a areia por baixo do portão, em fina camada que cobri os tijolos do terraço, como um tule branco que se movia a cada rajada!
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