segunda-feira, 2 de maio de 2016

A volta dos governadores - Marcos Nobre

• Temer não é Itamar com FHC, é Sarney sem Ulysses

- Valor Econômico

Deve ir a voto no Senado uma nova versão da Desvinculação das Receitas da União, a DRU. Com outro nome, o mecanismo foi criado como uma das condições de implantação do Plano Real, em 1994. A DRU exime o governo federal de observar o mandamento constitucional de utilizar necessariamente em áreas como educação, saúde e previdência social recursos oriundos de impostos e contribuições sociais e econômicas. No formato que prevaleceu até hoje, a desvinculação chega a 20% desses recursos.

Na prática, a DRU serviu para o pagamento de juros da dívida. Quando da preparação para o lançamento do Plano Real, a ideia era produzir condições para contabilizar grandes estoques de dívida camuflados pelo efeito inflacionário. Em situação de inflação descontrolada, não apenas se torna impossível um efetivo controle das contas públicas, mas é o próprio planejamento do investimento público e privado que chega ao ponto de se inviabilizar.

Desde sua criação, a DRU foi exclusividade da União. Um dos movimentos mais importantes do Plano Real foi a concentração da política econômica no governo federal. A DRU, a privatização dos bancos estaduais e a renegociação das dívidas dos Estados foram essenciais para que esse objetivo fosse alcançado. Até aquele momento, os governadores dispunham não apenas de bancos públicos estaduais, mas de outros importantes recursos de política econômica. Segundo o diagnóstico dos formuladores do Plano Real, o sucesso da iniciativa dependia da concentração no governo federal do conjunto de instrumentos de política econômica. Sem isso, dificilmente uma coordenação efetiva das iniciativas e uma política uniforme poderiam ser implantadas.

Foi assim que FHC encerrou uma fase da redemocratização conhecida como "política dos governadores". As primeiras eleições diretas para governador de Estado depois do golpe de 1964 aconteceram em 1982, bem antes, portanto, da eleição direta para presidente da república, que só aconteceu sete anos depois. O primeiro civil a chegar à presidência depois de 21 anos de ditadura militar foi Tancredo Neves, escolhido indiretamente por um colégio eleitoral manifestamente ilegítimo. A ideia era a de que o próprio desenrolar do governo de Tancredo pudesse produzir a legitimidade que lhe tinha faltado na origem.

Só que, com a morte de Tancredo, quem assumiu foi José Sarney. E aí a legitimidade que lhe faltava não podia ser suprida pelo seu próprio governo, mas tinha de ser buscada em duas outras instituições, os governadores de Estado e o Congresso, eleitos diretamente e ancorados no amplo apoio popular de que dispunha então o PMDB. Foi esse o pêndulo que determinou em larga medida os rumos do governo Sarney, que tinha de se mover no espaço estreito dos acordos firmados entre o Ulysses Guimarães presidente da Câmara dos Deputados e os governadores de Estado.

Apesar de toda a encenação de governo pós-impeachment precursor do Plano Real, Temer não é Itamar Franco, é José Sarney. E, como Sarney antes dele, pode perfeitamente levar seu mandato até o fim. Se sobreviver até o início do próximo ano sem abertura de processo de impeachment contra ele, Temer terá condições de arrastar seu governo até o final de 2018. E não é improvável que pelo menos a situação econômica seja menos pior do que aquela que se viu até março de 1990, quando Fernando Collor assumiu a presidência. A retomada de algum crescimento em ambiente de inflação controlada é um quadro que não se pode comparar aos horrores do final do governo Sarney.

Só que, do ponto de vista político e social, a situação de Temer é ainda mais desfavorável que a do último presidente da República do PMDB. Temer é um Sarney sem Ulysses Guimarães. Afinal, quem está sentado na presidência da Câmara dos Deputados é Eduardo Cunha. E o outro lado do pêndulo que faltava para completar o quadro político dos anos 1980, os governadores de Estado, agora não falta mais. Acabou de entrar justamente com o projeto da nova DRU que será votado amanhã pelo Senado.

O substitutivo do senador e virtual ministro do Planejamento Romero Jucá não apenas eleva o percentual de recursos da DRU de 20% para 25% como estende o mecanismo para Estados e municípios. E isso até o final de 2023. Dessa maneira, todos os níveis de governo terão agora sua exceção constitucional. E, na situação de quebradeira generalizada das finanças públicas, despesas com saúde, educação e previdência irão para o final da fila. A homogeneidade da política econômica continua garantida. Mas o mesmo não se pode dizer do SUS, da escola e das aposentadorias.

Ou do transporte público. Junho de 2013 começou por aí. Na época, já não era pelos 20 centavos e agora será ainda menos, já que os 20 centavos se multiplicaram por pelo menos quatro desde então. Os Estados e municípios estão arruinados, não há dúvida. Mas permitir que possam dispor de uma exceção constitucional de 25% em relação a despesas obrigatórias é pedir para quem não tem emprego nem renda que também abra mão da merenda dos filhos ou do atendimento já precário no posto de saúde.

O governo Temer será o primeiro desde Sarney a recolocar os governadores em posição de comando no tabuleiro da política nacional. Isso não se deve apenas à atuação decisiva que tiveram os governadores sobre as bancadas de seus Estados na votação do impeachment na Câmara. Mostra também a fragilidade da articulação política de Temer, que se encontra imprensada entre as cúpulas partidárias e suas bases parlamentares, sem ainda ter encontrado um ponto de equilíbrio que lhe garanta uma posição de força.

A solução de empoderar novamente os governadores para tentar garantir essa posição de força não é uma autêntica solução. É antes uma solução mais do que temporária, que vai trazer ainda mais problemas do que os que já se tem. Com o liberou geral da DRU, a ruína das finanças estaduais e municipais vai mostrar ser um poço ainda mais sem fundo do que o rombo das contas federais. Porque Junho começou nos municípios e nos Estados, mas não demorou a tomar os prédios de Brasília.
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Marcos Nobre; é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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