- Valor Econômico
Reforma previdenciária pode derrotada pela tríade infernal da ignorância, oportunismo e corporativismo
O panorama visto de hoje não é favorável à reforma da previdência. Antes mesmo de ir a voto na comissão da Câmara, o projeto do governo já havia sofrido severa desidratação, perdendo cerca de 40% do seu conteúdo, em termos de economia futura de gastos previdenciários. Mesmo assim, as chances de sua aprovação em plenário parecem não ter aumentado, a julgar pelas pesquisas de opinião sendo realizadas entre os deputados federais.
Os obstáculos à aprovação da reforma da previdência têm pelo menos três origens: ignorância, oportunismo e interesses corporativistas. A combinação desses três fatores, aliada a alguns erros táticos do governo, está gradualmente enterrando a grande (e talvez a última) chance que o país tem de corrigir a tempo os graves desequilíbrios da equação previdenciária que ameaçam levar ao colapso as contas públicas.
Comecemos com a ignorância. Em recente pesquisa de opinião realizada pelo Datafolha, cerca de 70% dos entrevistados se mostraram contrários à reforma. Em parte, a opinião desfavorável decorre da pouca familiaridade com o conteúdo da proposta que está em análise no Congresso Nacional. Esse ponto é ilustrado pelo fato de, na mesma pesquisa, uma sólida maioria ter se mostrado favorável ao fim do tratamento diferenciado entre categorias de trabalhadores, um dos tópicos da proposta de reforma encaminhada ao Legislativo pelo governo Temer.
Contudo, mais relevante é a oposição daqueles que, razoavelmente cientes do conteúdo da reforma, a ela se opõem por acreditarem na fantasia da inesgotável capacidade de a sociedade brasileira financiar, de algum modo, a previdência ao longo dos próximos anos e décadas. Muito embora os números sejam eloquentes, não acredita essa maioria que as mudanças demográficas já tornaram insustentável nosso sistema previdenciário da maneira em que está hoje estruturado.
Por exemplo, o Brasil está entre um dos poucos países do mundo onde não há uma idade mínima para aposentadoria. Está na má companhia de países da relevância de Iraque, Síria, Irã e Equador. Com o aumento da expectativa de sobrevida da população acima dos 65 anos, tal omissão tornou-se simplesmente desastrosa. Os gastos previdenciários no Brasil somam hoje 13% do PIB, números comparáveis aos da Alemanha e França, que têm uma proporção de idosos maior do que no Brasil.
Outra distorção cavalar do sistema de aposentadorias no Brasil é a existência de regimes díspares para trabalhadores da iniciativa privada e do setor público. O déficit agregado da previdência dos funcionários federais, estaduais e do DF está hoje próximo aos 3% do PIB, com tendência crescente nos próximos anos. Tal déficit equivale grosso modo ao do Regime Geral da Previdência (trabalhadores oriundos da iniciativa privada), mas este ampara um número dez vezes maior de beneficiários. Outro número que impressiona é a relação 1:1 entre aposentados e funcionários na ativa no setor público, que já praticamente inviabiliza a gestão das finanças públicas em muitas unidades da federação, proporção igualmente com tendência de piora nos próximos anos, caso nada seja feito.
A pouca visibilidade da grave situação da previdência para a maioria da sociedade brasileira tem sido prejudicada pela disseminação, principalmente na mídia social, de uma variedade de mitos e "verdades alternativas". Um dos mitos mais populares diz respeito a um suposto equilíbrio das contas da previdência. Os disseminadores de tal fantasia conseguem chegar a um número apropriado a suas teses, com uma conveniente contabilidade que despreza o gasto com as aposentadorias do setor público e soma de receitas tributárias do orçamento da seguridade social.
Outro mito popularizado nas redes é o de que basta cobrar a dívida ativa da previdência para que as contas fechem. Ignoram, entre outras coisas, a diferença entre fluxo e estoque e o fato de que parte relevante dessa dívida tem como devedoras empresas falidas ou em recuperação judicial.
Tais mitos, por sua vez, servem de combustível para os oportunistas do PT e adjacências que identificaram na reforma da previdência um tema capaz de mobilizar a militância contra o governo Temer, já que lhes falta a capacidade de autocrítica pelo desastre que impuseram à economia brasileira na última década. Não deixa de ser revelador que uma reforma em linhas semelhantes à proposta por Temer chegou a ser defendida por Dilma e seus ministros da área econômica em 2015.
Porém, a aprovação da reforma em sua forma original poderia ainda ser viável não fossem as pressões das corporações de funcionários públicos que formam as hostes mais articuladas contra a reforma da previdência. Prova disso é que grande parte da desfiguração da proposta original do governo veio para beneficiar grupos de pressão de funcionários que querem manter seus privilégios vis-à-vis a maioria dos trabalhadores. A propósito, um dos maiores erros táticos cometidos pelo governo, a meu ver, foi o de abandonar intempestivamente o princípio da unificação dos regimes previdenciários, ao concordar com a manutenção de alguns regimes diferenciados. A partir disso, abriram-se as comportas para novas concessões, estabelecendo uma dinâmica perversa que está aguando a reforma.
Em suma, tudo indica que o Brasil pode ser mais uma vez derrotado pela tríade infernal da ignorância, do oportunismo e do corporativismo. A conta será novamente pendurada para ser paga no futuro, com juros e correção monetária. Os custos serão enormes. Mas, a maioria do Congresso Nacional permanece insensível.
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Gustavo Loyola, doutor em economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.
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