- Folha de S. Paulo
Quando estabelece uma simetria entre ‘os dois lados’ na Virginia, Trump dilacera um valor da democracia
Robert Lee, o comandante das forças confederadas, viveu apenas cinco anos após o término da Guerra Civil, o suficiente para criticar o erguimento dos primeiros monumentos à fracassada insurreição.
"Penso ser mais sábio seguir o exemplo das nações que se esforçaram para apagar as marcas do conflito civil e consignar ao esquecimento os sentimentos por ele gerados", escreveu em 1869. As elites sulistas preferiram a memória ao esquecimento, ignorando o aviso de Lee.
Um século e meio depois, a disputa sobre monumentos não é mais uma contenda sobre o passado. Por isso, ao dizer que a remoção de estátuas"dilacera a história e a cultura" nacionais, Trump enuncia uma verdade irrelevante. Já quando estabelece uma simetria entre "os dois lados" em confronto na Virginia, ele dilacera um valor fundamental da democracia.
A equação trumpiana equilibra-se sobre os métodos violentos compartilhados por supremacistas brancos, de um lado, e pelos Antifa ("antifascistas"), de outro. Os Antifa americanos inspiram-se nos militantes esquerdistas que, no entre-guerras, enfrentaram os fascistas nas ruas das cidades alemãs, italianas e espanholas.
Na Europa daqueles tempos, os bandos fascistas funcionavam como pontas-de-lança de partidos ou exércitos em vias de conquistar o poder, algo que não ocorre nos EUA. Faz sentido, portanto, repudiar as violências promovidas pelos Antifa.
Os Antifa pertencem à linhagem dos grupos de "ação direta" oriundos da dissolução dos protestos de 1968 na Europa. Avessos à política institucional, eles não almejam modificar as orientações de governo. Irrompem armados de tacos de beisebol em assembleias da extrema direita, causam desordens em seminários com a participação de supremacistas, deflagram campanhas de perseguição pessoal a ativistas das hostes inimigas.
Imaginando-se anarquistas, exercitam suas tendências autoritárias definindo quem pode, ou não pode, expressar opiniões na arena pública.
"Dois lados" simétricos, então? Nem de longe. Uma diferença secundária encontra-se na escala. Os Antifa são grupos diminutos, que operam nas franjas da política americana. Os supremacistas, pelo contrário, formam poderosa corrente histórica, com ramificações em governos estaduais, que até esta sexta (18) contavam com Steve Bannon, um "arauto da causa", no posto de estrategista-chefe da Casa Branca.
Mas a distinção crucial é ideológica: os supremacistas atacam a igualdade política dos cidadãos, fonte filosófica das democracias, enquanto os Antifa operam (como baderneiros) em nome precisamente deste princípio.
A proclamada equivalência entre os "dois lados" é só um álibi: a armadilha de linguagem engendrada para naturalizar a presença de suásticas em manifestações nas cidades americanas.
A persistente recusa trumpiana de separar um lado do outro, chamando o mal pelo nome, deita raízes numa camada de solo profundo, sedimentado bem abaixo dos traços sórdidos da sua personalidade ou da concorrência política circunstancial. Trump enxerga os EUA como uma nação de colonos cristãos brancos sitiada por hordas de "estrangeiros", que são negros, imigrantes latinos ou muçulmanos.
O presidente não é um neonazista, um entusiasta da Ku Klux Klan ou um adepto da alt-right, a "direita alternativa" de Bannon –mas partilha com eles um núcleo virulento de valores nativistas.
Trump inventa uma falsa simetria com a finalidade tática de proteger os seus. Ele esquiva-se de condenar os manifestantes de extrema direita de Charlottesville porque, no cálculo final, concorda com eles.
Por motivos paralelos, mesmo agora, o PT, o PSOL e os "intelectuais orgânicos" da esquerda brasileira rejeitam denunciar o regime chavista na Venezuela.
Eis uma simetria genuína: nossa anacrônica esquerda atribui às liberdades públicas o mesmo valor que Trump atribui à igualdade entre os cidadãos.
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