segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Cacá Diegues: Um conto de mina

- O Globo

Coincidindo suas funções profissionais com as duas primeiras sílabas de seu nome, esse Geraldo era o único Geraldo cujo apelido ficou sendo Gera. Pois ele gerava a energia necessária para fazer a mina gerar valores. Sobretudo o ferro, especialidade do terreno.

Gera nunca deixava a mina, não tinha mesmo para onde ir ou a quem ver no fim de semana, nos feriados e nos dias santos. E depois, lhe dava prazer ficar por ali, vigiando sozinho a mina e a mata em volta dela. Na mina, gastava a vida. Na mata, gostava dela.

Na sexta feira, Gera trabalhou até meio dia e meia e foi almoçar. Não era propriamente almoçar que ele desejava, mas ver os amigos que embarcariam para suas famílias e seus amores, em cidades e vilas de vários tamanhos, cada um ansioso para repetir o sucesso da folga anterior.

Nem era de alguém que Gera queria ouvir falar; mas do mundo, de como ele ia, o que faziam dele àquela altura dos acontecimentos.

Gera chegou ao refeitório pela porta principal, olhou em volta da casa cheia, viu onde a maior parte dos amigos se encontrava a comer em pé, que a pressa de ir embora era maior do que uma fominha de nada.

Abraçado a dois bagunceiros da mina que o haviam abraçado, Gera ouviu a piada indecente que um deles contou. E, para conter a gargalhada, virou-se para as janelas de vidro que davam para a barragem e o resto do rio. Alguma coisa diferente fluía em silêncio na sua direção, como se as nuvens tivessem chegado do céu e mudado de cor e velocidade. Gera suspirou fundo e ficou por isso mesmo.

Vendo aquele e aquela que pareciam flutuar, os meninos de uns e os animais domésticos de outros, esperando do lado de fora do refeitório, Gera começou a sentir vontade de pegar um avião e também ir embora. Ou, quem sabe, podia ser um ônibus daqueles grandes que o levaria à capital e daí à cidade imensa que, no fundo, era o que desejava mesmo conhecer. E Gera decidiu partir.

Não era bom se lembrar de tudo o que passou na viagem, um alvoroço de abraços e pernadas, operários de todas as cores e classes, que Gera não sabia se davam gargalhadas histéricas ou se choravam cheios da falta de som. Quando Gera chegou aonde esperava chegar, sentiu um alívio muito grande e jurou nunca mais viajar com aquela gente, numa viagem daquela.

Gera havia se preparado para se defender de assaltos e tiros, diziam que até um mero celular era motivo de assassinato naquela beira-mar. Mas não houve nada disso. Gera usou seu celular várias vezes para ver as horas, para ver quem ligou, para falar com alguém, essas coisas, e nada lhe aconteceu. Pelo contrário, a população local era gentil e generosa, teve uma hora em que o aparelho caiu no chão e correram uns três ou quatro para recuperá-lo e devolvê-lo a seu dono. Gera pensou que talvez sonhasse.

Ele também ficou animado com os discursos de líderes na televisão da vitrine, dizendo que todo cidadão e toda cidadã tinham o direito de se manifestar como bem preferisse, a favor ou contra, não interessava. Que não era crime discordar, de maneira alguma, era até bom para a saúde mental do país. Gera exultou.

Crime era não se interessar pelos outros, deixar que uns fossem muito mais felizes do que seus vizinhos, sem tentar fazer nada, por pura manipulação de destinos. Gera se invocou com a notícia de que os 26 homens mais ricos do país tinham juntos mais do que têm 95% da população. Certamente um exagero que ninguém deixaria por nada.

Ali mesmo Gera iniciou um movimento para acabar com isso. Aos poucos, todos aderiram e até o superlíder do lugar declarou que Gera estava com a razão. Começariam tudo outra vez, a partir do cuidado com quem trabalha, numa mina ou fora dela, e não fosse vítima da avareza dos poucos que ganhavam com isso. Pouquíssimos. Cuidado com o outro, era a ambígua palavra de ordem do movimento.

Antes de ir embora, Gera receberia a confortadora notícia de que todos teriam oportunidades iguais. Os que não se dessem bem, seriam socorridos pela compaixão, solidariedade na trajetória infeliz. Ninguém mais ia morrer por se dedicar ao trabalho.

E Gera gastou o resto do tempo de seu passeio admirando a limpeza das ruas bem tratadas, os namorados reencontrando suas namoradas em jardins floridos, os meninos pretinhos e os meninos menos pretinhos entrando para a escola, ganhando roupas e livros novos que transformavam a vida deles e os tornavam parceiros de um futuro garantido.

Sem saber direito por onde andava, Gera teve sono e acabou se recolhendo a um palácio muito branco. Ali encontrou uma cama onde seu corpo imenso cabia.

E só acordou muito mais tarde, com uma pequena multidão em volta dele, elogiando seu comportamento e a infelicidade de que foi vítima, na sexta-feira passada. Gera percebeu que não adiantava fazer mais nada, era melhor voltar a dormir. E suspirando foi o que Geraldo fez, sem vontade nenhuma de acordar num mundo que não era mais o dele.

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