- O Globo
Em Nova York, a ojeriza ao discurso homofóbico e misógino de Bolsonaro ultrapassou parte da colônia brasileira
No sábado, dia 4, Nova York amanheceu entristecida. Não por causa da garoa fina e dos ventos atlânticos cruzados dos rios, algo comum nesta época. Mas pela notícia — ideológica, sem dúvida, e não prevista no horóscopo — do cancelamento da visita de Jair Bolsonaro à cidade. As nervosas mensagens eletrônicas cruzaram as pontes, rebatiam nos subúrbios (o bolivariano Queens etc.) e espoucaram no Midtown, onde um pequeno aglomerado de pessoas esperava ansiosamente a chegada do Mito, prevista para o dia 14 de maio. Das estantes da gloriosa livraria Strand, na comunista Broadway, às filas para a mostra de Frida Kahlo (amante de Trotski, imagine Carluxo!) no Brooklyn Museum, se ouviam também murmúrios e impropérios de rematado espanto.
A tristeza se explicava. A mais gramsciana das cidades dos Estados Unidos (rivaliza com a leninista São Francisco) se perguntava: o que fazer com tantos ovos de galinhas marxistas?
Ao longo dos últimos dias, em Nova York, a ojeriza ao discurso homofóbico e misógino de Bolsonaro ultrapassou parte da colônia brasileira na cidade (onde ele ganhou sobre Haddad) e foi encorpada por diferentes organizações americanas da sociedade civil e por autoridades poderosas, como o prefeito Bill de Blasio e o senador Brad Hoylman.
Mas os protestos programados escondiam uma silenciosa divisão, capaz de abalar a autoestima da férrea coerência bolsonarista. Sim, muitos dos manifestantes prometiam seus ovos apenas para Ernesto Araújo, o mais disléxico leitor de orelha de livro do atual governo.
A cidade só voltou a sorrir no final do sábado, quando Bill de Blasio humilhou Jair Bolsonaro ao chamá-lo de “valentão que foge da briga”. E ao dizer que os valores de Nova York não comportam um sujeito que não respeita a diversidade.
Juro, ser chamado de covarde em inglês é pior do que tomar facada em Juiz de Fora.
A frustrada viagem nova-iorquina de Bolsonaro talvez rivalizasse na história política com a chegada de Pinochet, ditador chileno (outro local onde nosso herói também foi humilhado, daí em espanhol), a Londres, na distante década de 1980. O sanguinário militar rangeu dentes ao não poder metralhar as dezenas de manifestantes que o chamavam de assassino. Na ocasião, reza a lenda, quem se frustrou foi o escritor Graham Greene. Avistado no aeroporto de Heathrow, depois de anos sem pisar em Londres, os jornalistas quiseram saber o motivo de sua presença. “Vim mijar no pé do ditador”. Não ocorreu o dessexualizado golden shower, mas anos depois o castigo veio a cavalo, e o ídolo bolsonarista amargou cana dura nas masmorras de Londres.
Entre a Londres de Pinochet e a Nova York de Bolsonaro, não há apenas um oceano e algumas décadas. Há aquilo que o comando petista e o presidiário Marcelo Odebrecht não perceberam: a globalização dos meios financeiros e das comunicações. O ditador chileno ficou preso na Inglaterra por ordem de um juiz espanhol; os camaradas petistas não desconfiavam dos rastros digitais suíços de suas maracutaias sob sotaque baiano; e Bolsonaro, já com o Rider na mala, arremeteu por conta de um prefeito nova-iorquino cioso dos valores de seus munícipes (vai aprendendo, Crivella). O presidente fujão (na definição do alcaide) caiu abatido pela militância mobilizada pelas redes sociais, em palavras de ordem trocadas em vários idiomas. Carluxo vai dizer que o “Financial Times” e a Delta Airlines (que se recusaram a patrocinar o regabofe quase oferecido a Bolsonaro) são instrumentos do comunismo internacional e que o Museu de História Natural é uma célula darwinista no West Side, mas ele só será ouvido em trechos da Avenida das Américas. Na trotskista Quinta Avenida ecoa um “Jair fujão”.
Se Nova York não quis receber o desabrido presidente, também por sua incapacidade em dar segurança à vida dos brasileiros (né, Jean Wyllys?), a cidade também tritura os seus —sem dó. No mesmo sábado vermelho, entre as bancadas da Strand, comentava-se o novo golpe contra Woody Allen. Algumas das principais editoras da cidade se recusam sequer a receber para avaliação os originais de suas memórias. O motivo? A antiga acusação, jamais comprovada, de seu assédio contra uma de suas enteadas, filha adotiva da atriz Mia Farrow, sua ex. E há meses a Amazon Prime se nega a lançar seu último filme.
Se Allen, que inventou Manhattan como palco do mundo, há 40 anos, é condenado em sua cidade ao ostracismo, imagine o que aconteceria no Midtown com a invenção de Olavo de Carvalho. Tudo comunista!
*Miguel de Almeida é editor
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