- Folha de S. Paulo
Para defender as instituições será preciso separar aquilo sobre o que não se concorda daquilo que viola as regras do jogo
A recente sequência de declarações abjetas de Jair Bolsonaro acendeu alarmes em diferentes regiões do espectro político. Sua incapacidade de circunspecção parece nos lembrar que, se lhe for dada a oportunidade, pode lançar o país numa aventura autoritária.
Frente a essa ameaça concreta, a história sugere a formação de uma ampla coalizão que proteja os fundamentos institucionais contra o avanço autoritário, limitando o Poder Executivo e minando a sua base de apoio.
Mas como montar uma coalizão ampla quando a dinâmica da polarização enredou a sociedade em argumentos que ancoram posições políticas legítimas em posições inaceitáveis, que cada lado da polarização considerou tão execráveis que deveriam ser expelidas do jogo político regular?
Como, num ambiente que permanentemente atiça a indignação contra a posição do adversário, separar aquilo do que se discorda daquilo que viola as regras do jogo?
É o que tem acontecido, por exemplo, com a agenda econômica de Bolsonaro e seus ensaios mais autoritários.
A liderança da esquerda logo percebeu a conveniência de conectar as reformas econômicas com os arroubos autoritários do presidente, como se o reformismo liberal fosse função ou efeito do autoritarismo.
Assim, a reforma da Previdência não foi apresentada apenas como uma medida liberal que, da perspectiva da esquerda prejudicaria os trabalhadores, mas também como uma espécie de arbítrio. Era como se a truculência do autor da medida contaminasse e comprometesse o conteúdo, fazendo dela antidemocrática, no sentido de violar as regras do jogo democrático.
Essa operação de ancorar uma medida legítima numa postura inaceitável também foi utilizada pela nova direita. Ela amarrou sua indignação contra a corrupção na ação de um Estado social, de maneira que defender uma ação vigorosa do Estado passasse a ser visto como defender a corrupção, o que para ela era inaceitável.
Assim, fazer política industrial, política cultural ou política social precisa deixar de ser visto necessariamente como um meio de corromper empresários, comprar apoio de artistas ou comprar o voto dos pobres.
Em outras palavras é preciso que o discurso político module a indignação, separando aquilo do que não se concorda, mas que é legítimo, daquilo que é efetivamente antidemocrático —coisas como restringir a independência dos poderes, prender jornalistas ou perseguir opositores.
Enquanto essas associações não forem desfeitas no debate público, não será possível a construção da coalizão ampla entre esquerda e direita que permitirá proteger o país nos próximos três ou sete anos.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
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