terça-feira, 6 de agosto de 2019

Luiz Gonzaga Belluzzo*: Perplexidades monetárias

- Valor Econômico

A política monetária deve reconhecer seus limites e a fiscal deve ser reintroduzida como meio de estabilização

Em depoimento prestado ao Congresso americano no dia 10 de julho, o presidente do Federal Reserve Jerome Powell mostrou as garras na resposta à primeira pergunta. Indagado a respeito do aquecimento da economia americana, denunciado por uma da taxa de desemprego de 3.7%, Powell sapecou:

"Não temos base para chamar isso de um mercado de trabalho aquecido. Os salários sobem um pouco acima de 3%... muito abaixo dos aumentos de produtividade e, assim, não são suficientes para colocar qualquer pressão ascendente sobre a inflação. 3,7% por cento é uma taxa de desemprego baixa, mas para chamar algo de quente precisa haver algum calor. Ouvimos muitos relatos de empresas que têm dificuldade em encontrar trabalho qualificado, mas não vemos os salários respondendo".

O economista Joshua William Mason, do Roosevelt Institute, comentou o depoimento de Powell e buscou expor o paradigma, agora em ruínas, que sustenta as politicas monetárias de metas de inflação: "Na visão ortodoxa, há um nível máximo bem definido de produção na economia - uma capacidade baseada no trabalho, recursos naturais, tecnologia disponíveis no país e assim por diante. Isso geralmente é conhecido como produto potencial. Contanto que os gastos estejam abaixo deste nível, mais gastos vão chamar mais emprego e saída. Mas acima deste nível, mais gastos só vão aumentar os preços".

Na visão ortodoxa, o melhor guia para o produto potencial é a taxa de desemprego. Há um nível de desemprego, chamado de "taxa natural" ou NAIRU (taxa de desemprego não aceleradora da inflação) que corresponde ao produto potencial. Quando o desemprego cai abaixo deste nível, a inflação aumentará.

A autocitação é uma deselegância, mas peço vênia - diria o ministro Barroso - para provisoriamente violar os bons modos. Escrevíamos com Gabriel Galípolo em 2011: os corifeus da teoria quantitativa da moeda arquitetaram a Nairu (taxa de desemprego não aceleradora da inflação) para mimetizar o conceito de taxa natural de desemprego, como advertência aos perigos de estímulos "pelo lado da demanda".

A economia tenderia automaticamente ao equilíbrio a longo prazo, graças à operação das "forças naturais" do mercado. A austeridade monetária e fiscal era reivindicada como panaceia destinada a restaurar rapidamente as "condições econômicas normais". Isso significa o seguinte: uma vez desvendado o hiato do produto para definir o produto potencial, emerge a "realidade" escondida sob o véu dos valores nominais.

A pedra angular das estimativas do hiato do produto é a confiança na inflação como indicador principal dos desvios do produto potencial. Em trabalho do Bank of International Settlements sobre o tema, Borio, Disyatat e Juselius mostram a tautologia dos cálculos do hiato do produto: se há fortes tensões inflacionárias, a economia está sendo pressionada a crescer acima do produto potencial. Se há deflação, está crescendo abaixo.

Borio constata que a verificação empírica dos modelos amparados nessa hipótese apresenta um dilema: ou os resultados não são economicamente plausíveis ou a hipótese supracitada da correlação entre inflação e desemprego é irrelevante para o cálculo do produto. Gentilmente, Borio et al estão dizendo que o tratamento do hiato do produto está irremediavelmente comprometido com o vício da tautologia. Os resultados estão contidos nos supostos. Resta à política econômica satisfazer as expectativas dos agentes racionais, sinalizando que vai tomar as decisões necessárias para que todos acreditem na recondução da economia à trilha do "produto natural de equilíbrio". E assim estamos de volta ao Nirvana da economia da oferta.

Retornemos ao depoimento de Jerome Powell. A deputada Alejandra Ocasio-Cortez perguntou: "No início de 2014 o Federal Reserve acreditava que a taxa de desemprego de longo prazo foi de 5,4%; no início de 2018, o Federal Reserve estimou que era 4,5%. Agora, a estimativa é de 4,2%. E o desemprego está em 3,7% hoje, muito mais baixo do que o estimado".

O desemprego caiu cerca de três pontos completos desde 2014, mas a inflação não é maior do que era há cinco anos. Tendo em conta estes fatos, que é possível que a estimativa do Fed sobre a menor taxa de desemprego sustentável fosse demasiado elevada?

Powell respondeu: "Acho que aprendemos: isso não se pode identificar diretamente. O Fed tem errado sobre o quão baixo o desemprego pode ir".

Ocasio-Cortez perguntou-lhe então o que isto implica para a ligação entre desemprego e inflação. "Isso não descreve mais o mundo real?". Powell concordou: "A conexão entre o nível de desemprego e inflação foi muito forte, se você voltar 50 anos. Ficou mais fraco até o ponto em que é um batimento fraco. Acho que aprendemos: a economia pode sustentar um desemprego muito mais baixo, sem perturbar os níveis de inflação".

Para encerrar, peço vênia, mais uma vez, para uma citação desafiadora da sabedoria convencional. As palavras são do livro recente de Olivier Blanchard e Lawrence Summers, "Evolution or Revolution": "Dez anos atrás, poucos teriam previsto os acontecimentos que estavam a desdobrar-se: as corridas contra as maiores instituições financeiras mundiais, as taxas de juros aprisionadas na armadilha da liquidez há uma década, a inflação ainda abaixo da meta, o hiato do produto grande e negativo em muitas economias avançadas".

Observamos uma tentação de voltar aos caminhos da pré-crise, um retorno às metas de inflação, com uma regra semelhante a de Taylor, sem recurso à política fiscal para fins de estabilização e uma reação contra a regulação financeira e medidas macroprudenciais. Deve-se resistir às tentações.

A política monetária deve reconhecer seus limites. A política fiscal deve ser reintroduzida como uma importante ferramenta de estabilização. E as políticas financeiras devem continuar a ser ajustadas e reforçadas. Podemos chamar isso de evolução. Se, no entanto, as taxas de juros neutras permanecerem extremamente baixas, talvez até negativas, ou se a regulamentação financeira for curta, poderão ser necessárias alterações mais dramáticas.

Podemos chamar isto de revolução. O tempo dirá.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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