- O Globo
O presidente da República mente. Não terá sido o primeiro. Em Bolsonaro, porém, a mentira é estratégia, método mesmo, e está a serviço da desinformação. A desinformação como política de governo. Aliás: que um revolucionário da cepa de Jair Bolsonaro —um desconstrutor reacionário —tenha podido se inscrever no imaginário político brasileiro como um conservador é a própria afirmação da influência da operação desinformante.
Repito: a desinformação é política de governo. Não exagero. Está em curso, desde o Planalto, um programa de relativização absoluta da verdade, de flexibilização daquelas balizas levantadas a partir do estudo, processo que depaupera o valor do acúmulo de experiências, o rebanho de saberes sobre os quais assentamos o erguimento da civilização — o que, conforme o espírito do tempo, deságua, aí está, em desapreço por expressões fundamentais de nosso pacto social contra a selvageria, donde, na prática, os ataques dirigidos e estimulados às instituições que encarnam a democracia representativa, a defesa do contraditório e a guarda da Constituição.
A imposição do bolsonarismo investe numa blitz cujo ímpeto destruidor de princípios resulta em que se considere equivalentes dados objetivos, colhidos com ciência, e a negação autoritária destes, sem qualquer base técnica que os refute.
Tanto a fala cretina sobre a morte de Fernando Santa Cruz quanto aquela, mistificadora, relativa ao desmatamento têm lastro numa modalidade de discurso impostor que consiste em desqualificar permanentemente a história, as estatísticas, os mapeamentos empíricos, as comprovações científicas etc. Há uma intenção narrativa: desqualificar o conhecimento e a fiscalização, jornalismo incluído, de modo a que sobre tudo paire suspeição. Trata-se de um movimento consciente na direção de deslegitimar, isto para que tudo quanto seja incômodo possa ser também rebaixado — desacreditado — como produto de uma armação ideológica contra um governo em busca da verdade. Registre-se que tal modus operandi também serve para diluir atenções ante a “velha política” praticada pela nova corte e sua fome patrimonialista.
O presidente é um desinformante, um dos caráteres constitutivos da mentalidade bolsonarista por meio do qual se cultiva a forja de conflitos, de crises artificiais, que anima o fenômeno político reacionário, essencialmente ressentido, que alavancou e sustenta a liderança carismática de Bolsonaro. Ele só surpreende o ingênuo que supunha que seu avanço, uma vez eleito, pudesse ter outro norte senão o da radicalização, do acirramento de cismas institucionais, de rachas nos princípios republicanos, de polarizações, de multiplicações de novos “nós contra eles”, cujo evidente objetivo é escalpelar —devastar —o terreno onde o centro político poderia se rearranjar. Desnecessário dizer que onde não há centro não haverá estabilidade.
O presidente trabalha para desequilibrar; estica a corda do ultraje ao máximo para testar fidelidades e firmar a bolha eleitoral que o manterá competitivo.
Suas manifestações estúpidas recentes não são exceções, mas previsíveis desenvolvimentos de um texto iliberal que promove um projeto autoritário de poder ancorado numa modalidade de campanha permanente para a qual é imprescindível a eleição constante de ameaças e inimigos conspiradores — em face dos quais o único caminho é recrudescer. O Brasil está — pelo menos desde 2013 — em depressão política aguda; doença de que Bolsonaro é a mais alta febre.
Há quem possa conviver com isso — com a mentira, com o esgarçamento do tecido social, coma depredação do ambiente de convívio político, coma intimidação do dissenso—porque, afinal, as reformas evoluem. A esses lembro—pois já havia advertido—que a última escalada autocrática de Bolsonaro é decorrente da sensação de liberdade que a aprovação da nova Previdência lhe dá. Temos um presidente que despreza o Parlamento —e do qual agora se crê menos dependente. Ele vai pra cima.
Boa política econômica — está provado —qualquer tirania pode encaixar. Incontornável é proteger os marcos democráticos; de resto, a única garantia de durabilidade para qualquer programa liberal. Que os cínicos não se percam disto. E tampouco do quão improvável é que reformas estruturais profundas possam se plantar num terreno de imprevisibilidades e meada pelo próprio presidente.
A história é cheia de exemplos de para qual destino pende o liberal que imagina poder instrumentalizar um autoritário populista: é clarear um tantinho o horizonte de curto prazo, afrouxar um pouco o nó fiscal, por meio do que o governo retome alguma capacidade de investir, para logo se tornar dispensável.
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