Folha de S. Paulo, 7.4.2024
'Democracia Fake' discute como governantes abandonam tática do medo por manipulação mais sutil
[RESUMO] Livro "Democracia
Fake", publicado recentemente no Brasil, alerta para nova
estratégia de ditadores contemporâneos. Buscando forjar um verniz
democrático que possibilite o estabelecimento de relações com países liberais,
esses líderes abandonam a repressão violenta e se voltam para táticas de
manipulação menos escancaradas.
Uma multidão se aglomerava na praça principal
da capital do Congo. Era 2 de junho de 1966 e o ditador Mobutu havia
declarado feriado naquele dia. Ele queria que todos acompanhassem o que
aconteceria ali.
Sob um sol escaldante, desceram de um jipe
militar quatro homens que usavam capuzes pretos, como descreve reportagem
publicada no dia seguinte pelo jornal americano The New York Times. Eles
caminharam até o centro da praça e, um a um, subiram os degraus de um andaime
improvisado, onde havia uma grossa corda pendurada. Na frente de todos, foram
enforcados.
Os quatro eram inimigos políticos de Mobutu,
que ordenou a execução sob o argumento de que o grupo tentaria matá-lo para dar
um golpe.
Sessenta anos depois, demonstrações ostensivas de violência como essa são mais raras, mesmo entre ditadores —no século 21, eles perceberam os benefícios de posar como democratas. É essa a tese proposta no livro "Democracia Fake" (Vestígio), de Sergei Guriev e Daniel Treisman.
A obra opõe dois tipos de ditadores. O
primeiro, mais comum no século 20, governa pelo medo. Tem como marcas a
repressão violenta (como torturas, prisões e assassinatos), a censura
generalizada e escancarada, a imposição da ideologia oficial do regime e o
culto à personalidade.
O outro tipo, mais contemporâneo, é chamado
pelos autores de "ditadores do spin" —não existe uma tradução literal
para o termo, mas o sentido é semelhante a ditadores da manipulação. Esses
governantes escondem a violência estatal, disfarçam a censura, cooptam empresas
de mídia privada e mantêm
uma fachada democrática.
Os dois representam um tipo distinto de
perigo, diz Guriev em entrevista por videochamada à Folha. "Os
ditadores do spin são menos perigosos por serem menos violentos. Há menos
pessoas morrendo e sendo torturadas nas prisões", afirma. "Por outro
lado, são mais perigosos porque fingem ser democratas e às vezes são
bem-sucedidos em enganar o Ocidente. Esse é o propósito do livro: alertar
o mundo democrático que eles, ainda assim, são ditadores."
O modus operandi de líderes como Lee
Kuan Yew, ex-primeiro-ministro de Singapura apontado no livro como
precursor do modelo, envolve manipular a opinião pública para ganhar
popularidade. "Os ditadores do spin sobrevivem não por destruir a
rebelião, mas por remover o próprio desejo de rebelião", escrevem os
autores.
O primeiro-ministro
húngaro Viktor Orbán é citado por Guriev e Treisman como um exemplo
desse tipo de ditador. Ele não adotou a censura declarada, mas, segundo
organizações que defendem a liberdade de imprensa, tomou controle do mercado da
mídia por meio de oligarcas aliados, que teriam comprado empresas do setor. A
ONG Repórteres sem Fronteiras afirma que 80% dos veículos de comunicação
húngaros estão, na prática, nas mãos do partido de Orbán.
O primeiro-ministro também disfarçou o
autoritarismo no método que utilizou para expulsar do país a Universidade
Centro-Europeia, fundada pelo magnata
George Soros, alvo frequente de sua retórica populista. Para viabilizar a
expulsão, o Parlamento governista aprovou uma lei que criava um motivo
burocrático que impossibilitaria a continuidade do funcionamento da
universidade na Hungria.
Orbán minou
o sistema de freios e contrapesos, mas não derramou sangue para isso —em
primeiro lugar, porque não precisou. Para líderes como ele, a violência é o
último recurso. Não necessariamente por uma questão moral, mas estratégica.
"A globalização hoje oferece muitos
incentivos para um país abrir as fronteiras e atrair investimentos
estrangeiros, porque isso cria empregos e crescimento econômico. Para conseguir
isso, eles têm que fingir ser democratas", diz Guriev. "Para viajar
para Davos [onde
acontece o Fórum Econômico Mundial], eles precisam usar um terno, não um
uniforme militar. As pessoas não vão apertar a mão deles se eles tiverem
torturado milhares."
A globalização é um dos componentes do que os
autores chamam de "coquetel da modernização", uma junção de forças
que empurraria algumas ditaduras rumo à democracia. A ditadura do spin seria
uma forma de adaptação e sobrevivência em meio a esse novo cenário.
"Se você quer transformar uma economia
de renda média em um lugar próspero, você vai precisar de crescimento econômico
baseado em inovação e conhecimento. Para isso, você precisa de pessoas com
ensino superior", afirma Guriev. "Essas pessoas não querem trabalhar
em uma ditadura do medo. Então, você precisa ser mais aberto, fingir que é um
democrata."
Guriev e Treisman criaram uma base de dados
utilizando uma série de critérios para distinguir os ditadores do medo e os do
spin. Os números corroboraram a tese deles: o segundo tipo é o mais frequente
entre as novas ditaduras. Nos anos 1970, 60% dos ditadores que assumiram um
governo se utilizaram do medo. Nos anos 2000, essa porcentagem caiu para menos
de 10%. No mesmo período, o percentual que governa pelo spin subiu de 13% para
53%. Os demais são de um tipo híbrido.
Guriev fala em duas maneiras comuns para a
ascensão de um ditador do spin. A primeira acontece após o declínio de uma
ditadura do medo. Por exemplo, um líder dessa linha morre e o seu sucessor
conclui que, no mundo contemporâneo, é mais estratégico ser um ditador do novo
tipo.
A outra, explica ele, ocorre quando um
governante, frequentemente populista, chega ao poder por eleições regulares e
então subverte as instituições democráticas. Os autores afirmam que o
ex-presidente Donald Trump tentou
fazer isso nos Estados Unidos.
Treisman diz que, se Trump for
eleito novamente neste ano, o
cenário se repetirá. "Ele vai tentar minar o sistema de freios e
contrapesos, vai tentar colocar ainda mais comparsas leais nas cortes, vai
tentar reduzir o acesso à mídia. Ele vai politizar o serviço civil, a
burocracia [do Estado]", afirma. "A equipe dele já anunciou que tem
planos de, no primeiro dia, demitir um grande número de funcionários federais e
introduzir novas pessoas leais a ele."
Isso não significa que, caso eleito, Trump
será bem-sucedido em sua tentativa. Os autores escrevem que a maior resistência
contra líderes como ele está no grupo que chamam de "bem-informados",
subconjunto da população com "educação superior, habilidades de
comunicação e conexões internacionais", que documentam e denunciam os
abusos do governante.
"Não apostaria contra a sociedade
americana, que é
muito resiliente e está mobilizada. Existem advogados, jornalistas, juízes,
funcionários do governo e ONGs que estão determinados a impedir a erosão da
democracia", diz Treisman. "Mas vai ser perigoso e destrutivo se ele
tentar. Uma vitória de Trump seria ruim para o mundo todo. Encorajaria os
ditadores de todos os tipos a aumentar a pressão. A gente viu evidências de que
o envolvimento americano ajudou a impedir a tentativa de golpe de
Bolsonaro."
Em alguns casos, um ditador do spin pode
recorrer ao medo —um caminho sem volta. Os autores afirmam que isso aconteceu
na Venezuela. Hugo
Chávez, um ditador do spin, foi substituído por Nicolás
Maduro, que, pressionado por uma grave crise econômica, aumentou
a repressão. O russo Vladimir
Putin seguiu o mesmo caminho após iniciar a Guerra da Ucrânia,
diz Guriev.
Putin teve grandes ganhos de popularidade com
a anexação
da Crimeia em 2014. Em um cenário de estagnação econômica, o russo
pode ter calculado que uma nova guerra voltaria a unir a população em torno de
uma causa em comum, fortalecendo seu governo.
"Ele viu que não estava funcionando, que
as pessoas estavam protestando e que a mídia independente estava ganhando
influência", afirma Guriev. "Na primeira semana, ele fechou a mídia e
bloqueou o Facebook e o Instagram, e o Parlamento
aprovou uma lei que determina que, quando alguém critica a guerra ou
usa essa palavra, pode ir para a cadeia por até oito anos. Isso é censura
declarada, algo que nunca tinha sido usado."
Putin foi, inclusive, o motivo pelo qual os
autores começaram a escrever o livro. Guriev é um economista russo, hoje
diretor de estudos de pós-graduação em economia na Sciences Po, em Paris.
Crítico do governo, ele foi aconselhado a sair da Rússia em 2013. À época, um
amigo afirmou ao New York Times que o economista tinha motivos para acreditar
que seria preso. Já Treisman é professor de ciência política na Universidade da
Califórnia e especialista em Rússia.
Os dois começaram a observar que as táticas
de manipulação de Putin —antes da guerra, considerado por eles um ditador do
spin, não do medo— eram semelhantes àquelas usadas por outros líderes, como
Orbán e Chávez. Então decidiram juntar forças para montar um modelo que
explicasse esse processo e testasse as comparações entre os governos.
Depois de publicar uma série de trabalhos
acadêmicos, Guriev e Treisman decidiram que o livro seria uma forma de chegar a
um público mais amplo.
Expor as táticas dos ditadores recentes é
justamente uma das soluções para lidar com eles. Outra, segundo os autores,
é limitar
as sanções econômicas apenas contra indivíduos e empresas. Os autores
lembram que o crescimento econômico é a melhor esperança para transformar
as autocracias em regimes menos violentos e, finalmente, em
democracias.
Os dois também advogam pela reparação das
instituições nos países democráticos, restaurando a confiança da população
nelas; que advogados, banqueiros, lobistas e outros integrantes da elite
ocidental parem de capacitar ditadores; e que empresas ocidentais deixem de
vender a eles tecnologias utilizadas para espionagem doméstica.
Apesar dos alertas, o livro tem uma nota
otimista: a ditadura do spin é tratada quase como um modelo de passagem em
direção à democracia. "A gente especula que [esse tipo de ditadura] não é
sustentável, mas não temos dados, uma prova empírica", diz Guriev.
Os autores afirmam que não existe nenhum
antídoto conhecido para o "coquetel de modernização" que empurra as
nações em direção à democracia.
Isso porque, ao mesmo tempo que o desenvolvimento
econômico ameaça os ditadores, já que os cidadãos têm mais acesso à
educação e à informação, ele também é necessário para que esses líderes se
mantenham no poder, já que crises econômicas ameaçam a popularidade do governo.
Ou seja, ditadores até poderiam atravancar o
crescimento para frear a democratização do país, mas isso também os
prejudicaria.
Em um momento de descontentamento, os
ditadores precisam de mais repressão para se manter no cargo —só que foi
justamente a inadequação da violência na sociedade globalizada o que os levou a
abandonar o medo e a escolher a manipulação.
Resta saber se esse dilema não resolvido de
fato levará o mundo a um cenário mais democrático.
DEMOCRACIA FAKE
Preço R$ 84,90 (416
págs.); R$ 59,90 (ebook)
Autoria Sergei Guriev e
Daniel Treisman
Editora Vestígio
Tradução Rodrigo Seabra
Um comentário:
Espetacular, muito informativo! O texto traz um bom resumo de aspectos importantes do livro.
Postar um comentário