Folha de S. Paulo
Quando o debate público se transforma em
torcida organizada, o poder deixa de ser verdadeiramente democrático
Recuperar o debate cívico será um dos maiores
desafios brasileiros da próxima geração
Bilhões de fragmentos de conteúdo são produzidos todos os dias pela humanidade: 500 milhões de tuítes, 50 mil episódios de podcast, 15 mil artigos científicos, dezenas de milhões de notícias jornalísticas. À primeira vista, é um sinal de liberdade. Mas —e se não for? Se o Brasil tem uma imprensa livre, editoras independentes e redes sociais abertas, parece um sinal inequívoco de vitalidade democrática. Mas —e se também não for?
Só há liberdade com debate cívico e contraponto. Em uma democracia madura, o confronto é produtivo porque expõe a incompletude de cada razão individual. A noção de "esfera pública" (Öffentlichkeit), formulada por Jürgen Habermas nos anos 1960, continua a ser um bom ponto de partida. Para ele, a democracia só sobrevive quando o poder nasce da deliberação racional e inclusiva, conduzida sob condições de simetria comunicativa.
A democracia, dizia o filósofo alemão, não se
esgota na contagem de votos; depende do intercâmbio discursivo que legitima o
próprio ato de governar. Na Europa, este
espaço discursivo surgiu nos séculos 17 e 18 com o advento da imprensa, dos
cafés e dos salões –lugares de debate que antecederam as instituições
parlamentares modernas. Ou seja, é
a palavra que gerou o poder.
A história do Brasil é pródiga em momentos em
que a circulação livre e racional de argumentos simplesmente não existiu e, por
isso, a democracia permaneceu incompleta. Desde
o período colonial, o debate público brasileiro foi condicionado pela
censura, pela exclusão política, pela desigualdade social e pelo analfabetismo
estrutural.
O
Estado Novo de Getúlio Vargas (1937–1945) professava uma esfera
pública dirigida, simulando diálogo sem permitir dissenso. A ditadura
militar (1964–1985) aprofundou esse modelo de controle
discursivo. Como
escreveu Hannah Arendt em "A Condição Humana", só quando os seres
humanos se reúnem e falam, tornando-se visíveis e reconhecíveis uns aos outros,
é que a liberdade surge. Mais uma vez, é da palavra que nasce o poder
democrático.
A era digital, com
seus algoritmos de engajamento e tribalização digital, talvez represente o
estágio mais sofisticado do encolhimento do debate público. Em vez de uma
esfera pública ampliada pela força da tecnologia, temos múltiplas esferas
parciais que já não dialogam entre si. Os cidadãos passam a consumir informação
apenas de fontes que confirmam as suas crenças, reforçando o viés de
confirmação e enfraquecendo o contraditório.
O resultado é uma cidadania reduzida a
plateia. Os cidadãos já não debatem, apenas "reagem" com curtidas,
hashtags e indignações momentâneas. A democracia, então, deixa de ser um regime
de confronto racional para tornar-se um regime de confirmação emocional.
Vivemos em um mundo informacional feito sob
medida, em que o dissenso é excluído por design. Todos se mostram, mas quase
ninguém comunica. Segundo
pesquisa do Pew Research Center, 80% dos brasileiros acreditam que o país
enfrenta fortes divisões políticas.
Recuperar o debate público será um dos
maiores desafios brasileiros da próxima geração. Até porque a cultura do
diálogo é frágil. As escolas promovem o conformismo, não o senso crítico. O
parlamento privilegia o sectarismo, não a confrontação de ideias. As empresas
valorizam a hierarquia, não a inovação.
A democracia brasileira precisa recuperar a
liberdade do dissenso. E uma boa forma de começarmos será pela palavra escrita.
Na história, poemas de Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto deixaram um
legado simbólico do uso da escrita como forma de resistência política. Nos
jornais, o Correio Braziliense (1808–1822) foi um dos primeiros fóruns
nacionais de opinião, antecedendo as próprias instituições representativas.
O
livro "A Palavra e o Poder: Uma Travessia Crítica por 40 Anos de
Democracia Brasileira", que coorganizo com Flavia Lima e Naief Haddad,
publicado pelo Grupo Editorial Record e lançado hoje, também representa a ideia
de que o poder só é legítimo quando resulta de um processo discursivo livre de
todos os tipos de coerção.
O debate é o momento em que a verdade se
submete à prova da pluralidade e em que uma sociedade se torna autoconsciente.
Por isso, a obra reúne mais de 80 personalidades — entre ex-presidentes da
República, intelectuais, jornalistas, economistas, ativistas e artistas —,
organizadas em pares que dialogam entre si, num raro exercício de confronto e
complementaridade de ideias sobre a democracia brasileira.
O livro terá vários lançamentos no Brasil (São Paulo, Belém, Rio
de Janeiro, Brasília) e em
Portugal (Lisboa)
até ao fim de novembro. Outras cidades e datas estão sendo consideradas. O
propósito não é apenas apresentar uma obra, mas promover a democracia, como
espaço de dissenso e consenso. Por isso, em cada evento, a composição dos
painéis de discussão é um exercício de pluralidade de origens, ideias e
experiências. Venha participar. Queremos ouvi-lo também.
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