Folha de S. Paulo
Câmara fecha o cerco contra investigações e
Gilmar dificulta reação do Senado
E continuamos dando aval para que o nosso
lado ultrapasse limites
Nas últimas semanas, dois movimentos
distintos, mas intimamente relacionados na percepção pública, reposicionaram o
equilíbrio de forças entre Congresso e
Supremo. Primeiro, a Câmara aprovou a chamada PEC da
Blindagem, que dificulta a abertura de processos criminais e a
prisão de parlamentares, exigindo autorização prévia das Casas Legislativas e
reforçando o foro privilegiado.
Mais recentemente, o ministro Gilmar Mendes, em decisão monocrática, suspendeu trechos da Lei do Impeachment e restringiu a legitimidade para pedir o impedimento de ministros do STF, agora concentrada na Procuradoria-Geral da República, além de elevar o quórum no Senado para esse tipo de processo.
Não se trata de causa e efeito direto. A PEC
nasceu do impulso de parte do Legislativo de se proteger do que considera um
STF expansivo; a decisão de Gilmar, por sua vez, mira o que chama de
"impeachment abusivo" e procura evitar que a corte seja intimidada.
As duas medidas, contudo, foram percebidas como expressão do mesmo antagonismo
moral.
Na base de tudo, está a percepção de que há
uma enorme iniquidade em curso —por exemplo, a irrefreável corrupção atribuída
à esquerda, o avanço do golpismo e do fascismo. E que denunciar ou enfrentar
essa ordem perversa tornaria o nosso lado vulnerável ao mal ou alvo de
clamorosa injustiça. Eis o ponto em que se encaixa a narrativa épica. Se
"forças terríveis se erguem contra nós", apenas outra força terrível,
de sinal invertido, pode nos salvar.
A esquerda, que nunca foi propriamente devota
do STF, viu na decisão de Gilmar uma barreira a futuras aventuras golpistas e
um freio à ofensiva da direita radical. A direita, por sua vez, comemorou a PEC
da Blindagem como reação necessária ao "ativismo judicial" e como
proteção de seus quadros contra um Judiciário percebido como inimigo. A torcida
vibra com a sensação de que, enfim, há alguém que pode bater o nosso opressor.
Entre 2013 e 2015, quando a extrema direita
digital começava a se organizar, o roteiro apareceu nas redes sociais: perfis
anônimos e militantes iam às contas de generais e das próprias Forças Armadas
implorar uma intervenção "salvadora" que livrasse o país da corrupção
e do domínio do PT. A história era simples: havia uma iniquidade monstruosa; só
um colosso maior que a esquerda poderia enfrentá-la.
Depois, a mesma imaginação política foi
aplicada ao STF. O bolsonarismo dedicou anos a alimentar a épica da corte como
poder perverso e ilegítimo: tribunal usurpador, inimigo do povo, obstáculo à
verdadeira vontade popular. Daí derivam tanto os documentos golpistas que
propunham prender ou neutralizar ministros quanto a centralidade simbólica do
STF no 8 de Janeiro.
Nessa dramaturgia, o impeachment de ministros
virou a atual obsessão, promessa de catarse e objetivo declarado da direita
radical para 2026. Conquistar o Senado, para o bolsonarismo, é sobretudo ganhar
o poder de punição exemplar do inimigo supremo. O impeachment é lido como a
única forma de retaliação eficaz contra um STF parcial e perseguidor —o golpe
contra o "golpe".
Mas o espelho existe do outro lado. Quem se
opõe ao bolsonarismo, exausto depois de anos de ameaças reais à democracia, foi
fechando os olhos para excessos e manobras do seu próprio colosso restaurador.
A decisão de Gilmar, que concentra a chave do
impeachment na PGR e eleva muito o custo político e institucional de acionar o
Senado contra ministros, em qualquer outro contexto despertaria fortes críticas
de progressistas preocupados com concentração de poder. Agora, muitos preferem
não ver o problema porque a medida atinge o adversário que sonha em usar o
impeachment como arma de guerra.
Um amigo sugere que aí se cruzam dois eixos:
a polarização recente, que insisto em destacar, e a velha tradição
sebastianista. Não apenas nos dividimos em campos inconciliáveis; tampouco
conseguimos imaginar a política sem um salvador em algum lugar —um general, um
tribunal, um Parlamento "purificado"— que cavalgue o seu cavalo
branco para enfrentar a injustiça, em nosso nome, e reparar as iniquidades.
E ai daqueles que não vestem as cores de um
dos lados e ousam dizer que todos estão errados.
O maior risco à democracia não é que colossos
se enfrentem —sempre se enfrentaram. O risco está em darmos autorização moral
para violar regras diante da sensação de ameaça a nossos valores ou ao nosso
grupo. Quando baixamos voluntariamente o próprio sarrafo moral e republicano e
aplaudimos que o nosso campeão faça exatamente o que condenamos no adversário.

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