Honduras condensa o conflito, repetido vezes sem conta na História da América Latina, entre uma democracia oligárquica e o impulso do caudilhismo. A primeira singularidade da crise atual encontra-se no seu enquadramento no cenário da "revolução bolivariana" de Hugo Chávez, que conferiu dimensões internacionais ao confronto entre o pretendente a caudilho e as instituições políticas do sistema oligárquico hondurenho. A segunda singularidade, nos erros crassos cometidos pela política externa brasileira, que contribuíram para a espiral de violência em que ingressa o país centro-americano.
A crise foi desatada pela tentativa de Manuel Zelaya de circundar o ferrolho constitucional armado para perpetuar o sistema oligárquico. O líder fraco, oriundo de um dos partidos do condomínio hegemônico, só agiu porque tinha o respaldo da Venezuela chavista. O impasse político e legal foi resolvido por um golpe institucional, conduzido pelo Exército, mas amparado pelo Congresso e pela Corte Suprema, que instalaram o governo provisório de facto de Roberto Micheletti. A ruptura foi condenada pela totalidade dos países americanos, de acordo com a Carta Democrática Interamericana, mas a mediação do costa-riquenho Óscar Arias fracassou, pois os contendores acreditaram que podiam prevalecer sem um compromisso.
Zelaya só teria uma chance realista de prevalecer se contasse com a interferência ativa dos EUA ou se tivesse amplo respaldo popular. Os EUA de Barack Obama pretendem deixar para trás o estigma do intervencionismo na América Central e, mesmo condenando o golpe, não se engajariam a fundo na defesa de um aliado de Chávez. A maioria dos hondurenhos não se importa com a sorte do rancheiro que sonhou ser condottiere. Então, quando as coisas pareciam resolvidas, a aventura do retorno clandestino, patrocinada pela Venezuela e, talvez, por Cuba, deflagrou o drama que está em curso.
É mais razoável acreditar em duendes que na versão do governo brasileiro, pela qual Zelaya se materializou sem aviso diante da embaixada em Tegucigalpa. Os indícios, contudo, não autorizam a imaginar que o Brasil tenha participado da urdidura do retorno clandestino. Uma narrativa mais sóbria sugere que Chávez, com a finalidade de instalar o presidente deposto na sede diplomática brasileira, promoveu o vazamento de um plano original de colocá-lo no escritório hondurenho da ONU.
A história rocambolesca será toda contada, um dia. Por enquanto, sabe-se apenas o que está aos olhos de todos: o Brasil permitiu a transformação de sua embaixada na tribuna de agitação política do alto da qual um caudilho frustrado clama pela insurreição. A imprudência, que compromete a credibilidade da diplomacia brasileira, poderia ter um desenlace administrável, sob duas condições alternativas: se Zelaya tivesse força popular para derrubar Micheletti ou se o fato consumado impusesse por si mesmo uma solução negociada aos contendores. Como nenhuma dessas condições é verdadeira, Lula e Celso Amorim correm o risco de aparecer como aventureiros que jogam nos dados a sorte de um país pobre e convulsionado.
O compromisso é o destino provável de contendores fracos, explicou dias atrás o ex-ministro Luiz Felipe Lampreia. A análise tem sentido, mas exclui dois elementos complicadores. De um lado, Zelaya não reconhece a sua fraqueza, em razão do engajamento irrestrito do Brasil na operação do retorno. De outro, Micheletti não enxerga um mediador confiável e teme as consequências da restauração de um líder que se imagina forte e deve tudo a Chávez. São esses os motivos da paradoxal radicalização dos contendores fracos, que avançaram até a beira do precipício da guerra civil.
O Brasil, que pretendia liderar, perdeu por sua própria culpa a condição para mediar. O representante dos EUA na OEA estava certo ao dizer que Zelaya "deve desistir de agir como se estivesse estrelando um filme antigo" - e mais ainda ao apontar a "especial responsabilidade de prevenir a violência" que recai sobre os ombros de uma diplomacia brasileira incapaz de controlar o ator canastrão hospedado na embaixada.
A saída para o impasse não pode prescindir de eleições livres e limpas, monitoradas por observadores internacionais. O estado de sítio implantado em Honduras e a repressão deflagrada contra os opositores ameaçam a legitimidade do processo eleitoral. É precisamente o que busca Chávez, quando estimula a radicalização de Zelaya. O Brasil teria o dever de agir na direção oposta, insistindo no diálogo. Mas preferiu dinamitar as pontes, substituindo a diplomacia pela ideologia.
No Itamaraty, é a hora e a vez dos amadores. Na reunião de emergência da OEA convocada para dar uma resposta à declaração do estado de sítio, o Brasil alinhou-se à Venezuela e rejeitou as sugestões moderadas dos EUA, provocando o fracasso do encontro. Feito o estrago, a diplomacia brasileira diagnosticou, pela voz do embaixador Ruy Casaes, que "a OEA está caminhando para um absoluto estado de irrelevância", e o ministro Amorim passou a dirigir apelos ao Conselho de Segurança da ONU. A ideia de sabotar os esforços de Washington na organização hemisférica para, então, solicitar ajuda de Washington na organização mundial constitui mais uma inovação piramidal dos luminares que dirigem nossa política externa.
A falência do Brasil como mediador não suprime a oportunidade para uma solução negociada, cuja base só pode ser o Plano Arias. Desde a decretação do estado de sítio, os EUA passaram a agir mais firmemente, embora com discrição, e surgiram sinais de divisão na elite política e empresarial hondurenha. Lula e Amorim, personagens do filme antigo dirigido por Chávez, dependem como nunca do sucesso da operação americana de bastidores. Se ela não funcionar, pesará sobre o governo brasileiro parte da responsabilidade por um desfecho trágico que podia ter sido evitado.
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.
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