- O Estado de S. Paulo
Augusto Comte, criador da doutrina positivista, afirmou que "os vivos são sempre, e cada vez mais, governados pelos mortos; tal é a lei fundamental da ordem humana". Se vivesse na América Latina, Comte veria confirmadas as suas palavras. Getúlio Vargas (1882-1954), Juan Domingo Perón (1895-1974) são casos clássicos da submissão dos vivos à influência dos finados: o primeiro sobrevive nos textos da legislação trabalhista brasileira e o segundo, por meio da política peronista na Argentina.
O envelhecimento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi confessado por Arnaldo Sussekind na vigência da Constituição de 1946, quando assinalou, nos Comentários (Ed. Freitas Bastos, 1959), que "as disposições consolidadas sobre a organização sindical, objetivando motivar a instituição de entidades necessárias ao funcionamento do regime de índole corporativa previsto na Carta Básica de 1937, tornaram-se, em alguns casos, incompatíveis com a filosofia jurídico-político da nova Constituição". Credite-se o eufemismo "em alguns casos" ao fato de Sussekind haver sido corresponsável pela Consolidação. Jamais viria ele a admitir o caráter corporativo-fascista da organização sindical.
Revela o Dicionário Histórico Biográfico, editado pela FGV-Cepedoc, que em 1962, ainda no governo João Goulart, Mozart Russomano redigiu anteprojeto de Código Judiciário do Trabalho e que, em 1963, Evaristo de Moraes Filho preparou projeto de Código do Trabalho, ambos esquecidos logo depois. Em 1975, atendendo a sugestão dos ministros da Justiça e do Trabalho, o presidente Ernesto Geisel instituiu comissão interministerial integrada por 11 especialistas em Direito do Trabalho, cuja presidência foi dada ao mesmo ministro Sussekind.
O anteprojeto, já no governo João Figueiredo, teve vida breve. A revista Veja de 9 de maio de 1979 estampou matéria com o título Grande por fora. Ouvido, Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, registrou: "Não adianta remendar a CLT, o que se necessita é de uma lei básica com garantias mínimas, como o máximo da jornada de trabalho, por exemplo, deixando o resto para ser discutido em convenção coletiva".
A prolixidade do anteprojeto, com 922 artigos e 24 anexos, decretou-lhe a morte, ficando adiada a revisão trabalhista.
Passaram-se anos até Lula ser eleito presidente da República. Com ele o País voltou a acreditar em nova era nas relações de trabalho. As esperanças robusteceram-se após a convocação do Fórum Nacional do Trabalho, instalado em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, no dia 25 de julho de 2007. Diante de centenas de convidados - entre os quais me encontrava - o presidente teceu duras críticas à legislação vigente. Entre outras coisas, disse: "Só me notabilizei como dirigente sindical lutando contra uma estrutura que considerávamos, na época, fascista e que era cópia fiel da Carta del Lavoro de Mussolini".
Ano e meio depois, desse fórum resultaram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 369/05 e o Anteprojeto de Lei de Relações Sindicais. Na exposição de motivos da PEC ressaltou o então ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini: "A Reforma da Legislação Sindical é um dos mais caros compromissos de mudança desta gestão, em função do atraso estrutural das normas vigentes.
Permitir uma organização sindical realmente livre e autônoma em relação ao Estado, além de fomentar a negociação coletiva como instrumento fundamental para solução de conflitos são objetivos essenciais para o fortalecimento da democracia e estímulo à representatividade autêntica".
Prosseguiu dizendo: "A superação dos obstáculos constitucionais à modernização do sistema de relações sindicais é a base para a constituição de uma atmosfera de ampla liberdade e autonomia sindicais, sem a qual persistiremos prisioneiros de um sistema sindical estigmatizado pelo artificialismo em seus mecanismos representativos".
Diante, porém, de manifestações de resistência, não às reformas, mas à orientação imprimida aos projetos, o governo bateu em retirada. Tanto a PEC quanto o projeto de lei foram relegados a esquecimento. Se as iniciativas tinham defeitos, disso não se seguia que a proposta de reforma estivesse equivocada. Caberia ao Poder Legislativo dar-lhes redação final, o que deixou de ser feito diante da passividade do Poder Executivo.
Durante a campanha eleitoral, alguns candidatos omitiram-se, outros, como a presidente Dilma Rousseff, tomaram posição contra qualquer alteração na CLT. Declarou Sua Excelência, entre outras coisas, que, reeleita, não revogaria o direito às férias e ao 13.º salário. Apenas algum cérebro retardado investiria contra direitos básicos como salário mínimo, direito de greve, Fundo de Garantia, descanso semanal remunerado, limitação da jornada, proteção à saúde, medidas de segurança no trabalho, estabilidade da gestante, seguro-desemprego, proteção à mulher e ao menor e outros do mesmo jaez, conquistados ao longo do tempo. Não o faria Aécio Neves, neto de Tancredo Neves, de quem herdou a sensibilidade para as questões sociais.
Reforma trabalhista significa, como pregava Lula quando sindicalista, democratizar a estrutura sindical, estimular negociações, valorizar contratos.
A avalanche de feitos na Justiça do Trabalho reflete o grau de incerteza que prevalece nas relações entre patrões e empregados. São visíveis a fuga de investimentos, a desindustrialização e o aumento do nível de desemprego, sobretudo entre jovens de famílias de baixa renda.
Lula até que tentou, porém retraiu-se e abandonou a reforma trabalhista. Diante do insucesso do PT, nessa e em outras esferas, a tarefa caberá ao próximo governo - que o bom senso indica seja entregue à oposição.
*Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
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