• Sonhei que iria para a Guiné, a trabalho. Fui buscar meu visto no Copacabana Palace.
- O Globo / Segundo Caderno – 1/3/2015
Sonhei que iria para a Guiné, a trabalho. Fui buscar meu visto no Copacabana Palace. O vice-cônsul estava na piscina, com as mãos apoiadas na borda. Estendi meu passaporte e ele sacudiu as mãos para se certificar de que estavam secas.
— E o carimbo? — perguntei.
— Primeiro, examino os papéis — respondeu. — O carimbo, o garçom traz na bandeja. Se for o caso.
Enquanto olhava minha foto no passaporte, disse que gostava muito da piscina do Copa.
Era preciso ser gentil:
— Temos boas piscinas em toda parte. É de nossa autoria a ideia de uma piscina de feijoada.
O vice-cônsul me olhou de cima a baixo, como se estivesse falando outra língua que não o espanhol.
Comentário inútil. A piscina de feijoada só existia na imaginação do autor de “Macunaíma”. E foi encenada uma só vez, no Parque Lage, por Joaquim Pedro de Andrade, com Grande Otelo no papel do herói sem caráter.
A informação só serviria para eles se tivessem uma escola de samba e fizessem um enredo sobre o Brasil. Uma piscina de feijoada daria um bom carro alegórico. É tudo.
O vice-cônsul fechou o passaporte, um dedo atravessado na página do retrato.
— O senhor acha que posso entrevistar o presidente Obiang?
— Sente-se aqui na borda da piscina — disse ele, com um sorriso benevolente.
Puxei a cadeira e o garçom me tomou como hóspede e me trouxe uma água de coco.
— O senhor deve ter um programa de tevê. Espero que seja decente, não vejo essas coisas. Por que imaginar que o presidente falaria com um repórter de tevê?
Nada mais natural, respondi: presidentes falam. O vice-cônsul disse que leu nos jornais que o segredo da presidente Dilma era fechar a boca. Foi minha vez de olhá-lo com um sorriso superior. A presidente referia-se ao segredo de sua dieta alimentar.
— Nossa presidente fala. Sujeito, predicado, verbos se atropelam como uma manada correndo do incêndio nas savanas. Mas fala.
O vice-cônsul deixou o passaporte na borda, mergulhou a cabeça para se refrescar. Emergiu com um rosto iluminado pelo reflexo do sol nas gotículas no seu rosto.
— Nosso presidente fala diretamente com Deus. Ouve conselhos, até críticas. Por que falar com os homens?
Subitamente tocou uma canção ao longe: “Nosotros que tanto nos queremos”. Mas não havia música na pérgula. Tomei como uma luz interna e voltei à carga:
— Nicolás Maduro fala com os pássaros. Cristina Kirchner fala no Twitter. Se Obiang fala com Deus, isso não é um absurdo em nuestra América. Ainda assim, podemos conversar.
O vice-cônsul chamou o garçom e me encheu de esperança. Vai pedir o carimbo, pensei.
— Uma água de coco, por favor.
Visto negado.
— Em tese, poderia conceder o visto. Mas é inútil. Alguns países mais liberais concedem o visto e estampam uma frase: “Deixai de fora toda a esperança”. Não é o nosso caso. Sabemos que as pessoas não se desgarram de suas ilusões.
— Não merecemos recusa — afirmei. — Prendemos opositores em Caracas, suicidamos promotores em Buenos Aires, mas circulamos com alguma liberdade.
— Hermano, cada um escolhe seu caminho. Onde é que você estava quando mataram Patrice Lumumba?
— Era apenas um garoto — respondi.
— Também eu era — disse ele. — Só estou mostrando a você como seria a Guiné se optássemos por discutir com as pessoas. Aqui no Brasil, não se prende nem se suicida, acho eu. Apenas se lança uma culpa no coração do opositor. Onde é que você estava quando Nero queimou Roma, quando Hitler aniquilou milhões de judeus? Não seja hipócrita.
Percebi que acabaram as chances do visto. O próprio passaporte na borda da piscina transformava-se numa sandália Havaiana azul-marinho.
— Tente no próximo ano, estaremos na mesma piscina, no mesmo carnaval, com o mesmo garçom, o Osvaldo.
— Arnaldo — respondi.
— Ok , o mesmo Arnaldo, desfiles, alegorias polêmicas. Quem sabe o tempo não te anime a mergulhar na imensa feijoada que é a história real?
Três esplêndidas mulheres da comitiva se aproximavam da piscina. Surfistas preparavam-se para a manhã de ondas. Não sei se de mim, do passaporte ou da sandália, surgiu um drone, e juntos sobrevoamos a límpida manhã de Copacabana. Na medida em que subíamos, via os vestígios do carnaval nas ondas e voava velozmente para o Nordeste em busca dos cânions e escarpas que lembram o tempo em que éramos um só bloco com a África.
Na cabine do drone, ainda ressoava a última advertência do vice-cônsul:
— Alguns anos de espera e o senhor se hospedará num prédio construído por brasileiros. Era para estar pronto, mas o senhor sabe, os atrasos, os aditamentos...
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Alguma coisa no drone anunciava a hora de voltar. Excesso de altura e velocidade, descemos suavemente no caminho de volta. Sobrevoamos os rios de xixi que desaguavam no mar e, de mansinho, acordei para a manhã real.
“Nosotros, que tanto nos queremos” — a música vinha do rádio na cozinha. Sem carnaval ou horário de verão, 2015, implacavelmente, começava.
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Fernando Gabeira é jornalista
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