- O Estado de S.Paulo
A saúde das democracias depende de normas não escritas tanto quanto de leis
Entre o Procurador Geral da República se disfarçando com a eficiência do Inspetor Clouseau e o dono inebriado da maior processadora de proteína animal do mundo se gabando de planos para destruir o Executivo, temos dois exemplos de uma tendência destrutiva. A saúde das democracias depende de normas não escritas tanto quanto de leis. Quando figuras com poder político, legal ou econômico derrubam tabus de compostura, a mensagem para o público é clara. Na mesma semana em que o Inspector Janot fez sermão – “Ninguém está acima da lei” – ele foi flagrado no canto de um boteco com o advogado do homem que havia mandado prender. Violou a lei? Não. Desmentiu o próprio discurso? A resposta pode ser encontrada nas inevitáveis piadas que inspirou via rede social.
Três anos e meio depois do começo da Lava Jato, os brasileiros que enfrentaram a recessão provocada, em parte, por inúmeros acusados, terão razão de desconfiar do poder simbólico que se atribui à investigação. Se normas de conduta coletiva são sistematicamente canceladas entre poucos privilegiados, por que respeitá-las quando ninguém está prestando atenção?
O mal-estar que as pesquisas de opinião revelam nos Estados Unidos e a exacerbação de divisões desde a campanha presidencial vêm do desrespeito a normas, um exemplo que Washington já vinha dando aos americanos antes de 2016. Se um presidente violar a lei, ele ainda será punido. Mas a penalidade por desrespeito à conduta associada a funções públicas foi drasticamente reduzida.
Ao contrário dos brasileiros, calejados na expectativa de um sistema que criou o slogan “Rouba, mas faz,” os americanos estão descobrindo o quanto sua democracia depende do que não está escrito na Constituição. Todos os presidentes, desde Jimmy Carter, divulgaram sua declaração de renda. O atual, não. Desde 1968, todos os presidentes acatam um ato anti-nepotismo que os impede de popular a Casa Branca com parentes. O atual, não. Até o tabu óbvio do pós-guerra – nenhum nazista merece tolerância – foi quebrado na reação presidencial espontânea à violência neonazista em Charlottesville.
O primeiro advogado contratado pelo presidente para sua defesa na investigação sobre colusão com a Rússia foi afastado depois de mandar um e-mail cheio de palavrões e ameaças a um estranho. Seu substituto usou a conta de e-mail oficial da Casa Branca numa troca de mensagens com um interlocutor que estava lhe passando um trote e mencionou mandar um drone para se livrar de uma repórter.
Acompanhar o comportamento na capital americana me faz lembrar fins de semana no retiro do colégio de freiras na minha pré-adolescência. Depois que a irmã monitora apagava a luz no dormitório e fechava a porta, começava a guerra de travesseiros, cigarros eram distribuídos, assim como revistas “para maiores.” A diferença é que, aos 12 anos, sabíamos do risco de violar normas. E não nos passaria pela cabeça dizer, como fez o então candidato republicano, aos 70 anos: “Se eu atirar em alguém na 5a Avenida, não perco eleitores.”
Até políticos com convicções pessoais repugnantes temiam a condenação coletiva por torná-las públicas. O atual presidente provou que a minoria que o apoia prefere o espetáculo de quebrar a porcelana, não importa as consequências. Esta forma de populismo está em alta no Brasil, que também começa a confundir o não-político com o pró-eleitor.
O áudio de Joesley revela convicção e planos para nunca ter que viver sob normas de comportamento acatadas por quem está sacudindo num ônibus lotado a caminho do trabalho esta manhã. Ele pode até ser absolvido graças à incompetência com que foi abordado pelo Inspetor Janot. Mesmo se for condenado, não aplacamos o problema da cultura que permitiu que ele fosse tão longe.
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