- Folha de S. Paulo
Donald Trump está dizendo que a Constituição dos EUA não o deterá
Qual é o valor específico de uma notícia? No fluxo rápido do noticiário, o caso de Joe Arpaio, o caçador de imigrantes, teve vida curta. Mesmo quando ganhou alguma luz dos holofotes, permaneceu à sombra de eventos mais "quentes", como o míssil norte-coreano que sobrevoou o Japão ou, no Brasil, a perene circulação de cargos de indicação política de nosso "presidencialismo de cooptação". Afinal, tem relevância especial o perdão de Trump um xerife aposentado, de 85 anos, do condado de Maricopa, Arizona?
Steve Bannon, o arauto da alt-right, a "direita alternativa", expelido do cargo de estrategista-chefe da Casa Branca, reagiu à demissão por meio da sua plataforma online, o Breitbart News, que acusou o "pântano" de ter tragado o presidente. O decreto de perdão a Arpaio, assinado dias depois, é a réplica de Trump: um gesto prático no prometido empreendimento de "drenar o pântano".
Na linguagem de Bannon, adotada por Trump, "pântano" é a "elite globalista" que, instrumentalizando os dois grandes partidos, domina a política americana. Tradução necessária: o "pântano" da direita ultranacionalista é o sistema de equilíbrio de Poderes, de pesos e contrapesos, que sustenta os princípios constitucionais dos EUA. O idoso de Maricopa, mais que um símbolo, funciona como veículo para a difusão de uma mensagem.
Presidentes americanos detêm a prerrogativa ilimitada de conceder perdão judicial. Regra geral, o gesto beneficia indivíduos que cometerem crimes graves e deflagra amargas controvérsias. Bill Clinton perdoou Marc Rich, um escroque do mercado financeiro casado com uma proeminente financiadora de campanhas do Partido Democrata. George H. Bush perdoou Caspar Weinberger, secretário da Defesa de Reagan, condenado por obstrução de Justiça no episódio Irã-Contras. Gerald Ford perdoou Nixon, seu predecessor, por quaisquer atos ilegais que tivesse cometido na Casa Branca. Arpaio, contudo, é um caso singular: perdoando-o, Trump está dizendo que a Constituição não o deterá.
Tradicionalmente, o perdão envolve um duplo reconhecimento de culpa. De um lado, o presidente só concede clemência depois que a sentença produziu parte de seu efeito (mesmo Nixon já sofrera a perda do mandato). De outro, o indultado exprime publicamente seu remorso, curvando-se à decisão judicial (ou, no caso de Nixon, do Congresso). Trump rompeu a tradição, firmando o indulto antes da publicação da sentença e perdoando um condenado que proclama a santidade de seus crimes. Mais: Trump expandiu seu gesto, convertendo-o em panegírico do "patriotismo" de Arpaio.
A singularidade não se circunscreve a isso. Nos seus 24 anos como xerife, Arpaio notabilizou-se por uma coleção de ilegalidades, especialmente suas patrulhas de saturação destinadas a aterrorizar imigrantes e trabalhadores temporários hispânicos. Instado por juízes a suspender as ações policiais baseadas em seleção racial, o xerife deu as costas aos tribunais, persistindo nas suas práticas ilegais. O "patriota" de Trump não é um criminoso qualquer, mas uma figura que desafiou, deliberada e sistematicamente, o princípio fundamental da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Segundo uma tese que circula em Washington, o perdão deve ser interpretado como um sinal aos alvos da investigação federal sobre os laços entre a campanha presidencial de Trump e a Rússia. "Mintam, que lhes cubro a retaguarda", estaria dizendo o presidente. Mas há um sinal ainda mais grave, enviado por Trump a todos os xerifes e policiais nativistas americanos: "persigam à vontade os não-brancos, ignorando tanto as leis quanto os tribunais, que lhes cubro a retaguarda".
Pela primeira vez, um presidente dos EUA usa o perdão para contestar as proteções constitucionais de direitos básicos. Não se preocupe, Bannon: Trump está mesmo disposto a "drenar o pântano".
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