terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Maria Clara R. M. do Prado: Por quem bate o coração da AL?

- Valor Econômico

A despeito das políticas redistributivas dos últimos anos, desigualdade mantêm-se profundamente inserida

Forjada a partir de uma política de colonização que, deliberadamente, manteve subjugados tanto a população indígena (foi exterminada, no caso da Argentina) quanto os escravos originários da África e seus descendentes, a América Latina chega ao século XXI com a forma de uma grande metáfora, representativa do atraso institucional, da desigualdade, da corrupção e do subdesenvolvimento.

Neste contexto deve ser analisada a crise que assola a Venezuela. A manipulação política das principais instituições, como o Congresso Nacional e a Corte Suprema, que está presente há séculos em praticamente toda a região latino-americana, alcançou naquele país níveis insustentáveis de aceitação por parte da elite política e empresarial que durante um bom tempo apoiou o golpe de Estado de 2002. A morte de Chávez, depois de onze anos à frente do governo, abriu caminho para o assecla Maduro, cujo único estandarte tem sido a defesa anacrônica dos "ideais bolivarianos" sustentados pelo antecessor. A fome transformou os "ideais" em um calvário, situação propícia para um contra golpe, desta vez com o apoio dos Estados Unidos e de outros países do continente, passando novamente ao largo do sistema institucional político e jurídico.

De todos os países da região, a Venezuela talvez seja o exemplo mais puro e emblemático da cara da América Latina. Dependente de uma única "commodity", a economia venezuelana é a expressão daquilo que há de mais atrasado e representativo da chamada "teoria da dependência", tema dos escritos do argentino Raúl Prebisch em meados do século passado. Baseava-se no argumento de que grande parte da renda criada internamente nos países periféricos (caso da América Latina) é transferida aos países centrais (os desenvolvidos) via termos de troca.

A exploração do petróleo foi formalmente nacionalizada em 1976, com a criação da PDVSA - a empresa petroleira da Venezuela, mas só se tornou efetiva a partir de 1983, quando se extinguiu a última licença de exploração concedida à uma empresa estrangeira. Teria sido possível uma melhoria nos termos de troca a favor dos venezuelanos, se o governo tivesse criado um fundo para investimento em infraestrutura e para garantia de desenvolvimento às futuras gerações, como fez a Noruega. Mas a inexistência de uma política consistente e a corrupção acabaram por confirmar que a Venezuela não se tornou mais próspera com a nacionalização do petróleo.

Vários são os estudos elaborados por economistas e cientistas políticos (a grande maioria fora do Brasil) com o objetivo de entender os motivos que fazem da América Latina a região com maior nível de desigualdade de renda no mundo, uma realidade que confisca dos países um maior potencial de crescimento do mercado interno - e de desenvolvimento - melhores oportunidades de emprego e maior produtividade econômica.

Para muitos, a raiz de todos os problemas estaria na forma como ocorreu a colonização dos países da região, baseada na extração mineral e em atividades agrícolas de monocultura, como a cana de açúcar e o café, ou na pecuária.

A mão de obra gratuita, ou quase gratuita, usada pelos colonizadores durante quase quatro séculos de dominação econômica, teria criado uma situação de vínculo umbilical entre classe social e etnia, associando renda à raça. Aquela desigualdade à partida teria alimentado e perpetuado a diferenciação de valores dos grupos sociais a ponto de moldar o funcionamento das instituições, sendo incorporada pelas futuras gerações de latino americanos.

É nisso que acredita Rosemary Thorp, economista ligada à Universidade de Oxford, ex-diretora do Centro da América Latina, no qual continua atuando como pesquisadora. Notabilizou-se inicialmente pelos estudos sobre as economias do Peru e do Chile, mas expandiu o leque de pesquisa nos últimos anos para toda a região, com a preocupação voltada para a questão da desigualdade.

No artigo "A Historical Perspective on the Political Economy of Inequality in Latin America" (Uma Perspectiva Histórica sobre a Economia Política da Desigualdade na América Latina), de 2012, publicado no Oxford Handbook of Latin American Political Economy, ela coloca três grandes pontos que no seu entendimento precisam ser considerados nos estudos da desigualdade na região.

"Desigualdade é frequentemente funcional ao crescimento, um apoio para determinada trajetória, até mesmo criada, em certas ocasiões, para facilitar o objetivo do crescimento", aponta ela. Nesse sentido, pode-se dizer que a política de "crescer primeiro para distribuir depois" foi um ato deliberado do governo brasileiro nos anos 70. Thorp também argumenta que uma análise balanceada deve explorar as condições iniciais que levaram à atual situação, mas também o processo de interações ao longo do tempo entre as forças domésticas e internacionais. Sugere que é crucial olhar para todos os aspectos da desigualdade, social, política, étnica e racial, para além da renda.

"O cerne da economia política em meio século, desde 1870 até a grande depressão, é que o crescimento e os interesses da elite tiraram proveito de mecanismos que ampliaram a oferta da mão de obra (através da baixa ou nula remuneração) e a desigualdade", enfatiza ela. Os anos do chamado processo de substituição das importações, através dos incentivos à industrialização, replicaram o modelo da desigualdade, agora mais visível nas cidades, com a maciça migração das zonas rurais.

Os efeitos da crise da dívida externa e do aumento da inflação agravaram o quadro. A despeito das políticas redistributivas introduzidas nos últimos anos, a desigualdade mantêm-se profundamente inserida, de forma latente, nas relações interpessoais, sociais, econômicas e políticas dos diversos países da América Latina.

Ajuda a explicar, no caso brasileiro, as catástrofes perpetradas pela mineradoras, os colapsos da educação, da saúde, dos viadutos e pontes, a morte dos meninos no Centro de Treinamento do Flamengo, e todos os cem ou mais números de casos atribuíveis à negligência e omissão das autoridades e à impunidade dos infratores.

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