- O Globo
É como se estivéssemos desistindo do país que sonhamos ser, em nome de uma arma que possamos carregar para nos livrarmos do outro
Cada um de nós sempre sonhou com um país em que sonhávamos viver. Um Brasil que construíamos em nossas cabeças, para nos distinguirmos do resto do mundo. De direita ou de esquerda, liberal ou conservador, pacífico ou guerreiro, sonhávamos em nos livrarmos de lugares-comuns inaceitáveis, substituindo a prioridade de carnaval e futebol por características mais nobres que poderiam fazer de nós uma nova e louvável civilização.
Nos entusiasmamos e nos decepcionamos com políticos e partidos que nos levariam a essa rara glória, da qual nos julgávamos um dos poucos povos merecedores, em todo o mundo moderno. Não foi só a súbita descoberta da corrupção generalizada que nos tirou a esperança de salvar o mundo com nossa identidade. Foi também a perda da fé em nós mesmos, a dúvida sobre nossas virtudes, a incerteza do merecimento.
Durante esses últimos anos, vivemos sem regras e sem projetos, entregues ao acaso da história, procurando sobreviver às tempestades nacionais e aos furacões cívicos que não pararam de soprar. Nos acostumamos a não ser nada, a ser apenas um povo fugindo de sua própria ignomínia. Éramos os náufragos de nós mesmos.
Temos vivido um vendaval de paixões polarizadas e histéricas. Há um desejo latente, já adotado por grande parte da população, de valorizar a vulgaridade e o homem dito “normal”, aquele que só reproduz os piores valores de nossa ignorância, sem sonhos nem fantasias, num horizonte sombrio e sem surpresas. O homem armado que vive para a morte. Ou pela morte.
Ao contrário dessa fatalidade, a democracia verdadeira é aquela em que temos todos as mesmas oportunidades, para que os mais aptos mereçam seus justos sucessos, sem que os outros sofram de fome, frio ou solidão, porque devem ser atendidos no que é indispensável. A democracia em que a maioria governa e as minorias, sem precisar mudar de ideia, reconhecem o direito de quem foi eleito pelo povo. A democracia em que só se discrimina aquilo que faz mal ao outro.
Sonhamos com um projeto que está em nossa formação racial, a única indo-luso-africana em todo o planeta. Que está no mito do país imenso e nos milagres históricos que o fizeram ser um só, com uma só língua e costumes. No mito da cordialidade, que cultivamos com certo cinismo. E, sobretudo, na permanente expectativa de sermos o futuro.
Não tem problema se o projeto não é unívoco. Durante a fundação da mais sólida democracia moderna, os “pais fundadores” muitas vezes se dividiram, como quando James Madison e Thomas Jefferson enfrentaram Alexander Hamilton em defesa do federalismo e de mudanças na Constituição recém-nascida. Essas mudanças estão até hoje consagradas no sistema democrático americano.
Não temos que temer o eventual confronto entre presente e passado, típico de nosso país. Banda larga e maracatu rural, por exemplo, são duas manifestações indispensáveis ao que somos. A política, a logística e até o orçamento das coisas não precisam ser iguais para serem igualmente construtoras do futuro . Mas o Brasil corre o risco de se tornar prisioneiro de uma consagração da platitude, onde o único valor reconhecido é o da morte elevada a uma desimportância consagradora. E, no entanto, lembro uma filósofa grega da Antiguidade: “Se a morte fosse um bem, os deuses não seriam imortais”.
Não preciso recordar as tragédias que temos vivido, neste início perturbador de 2019. A barragem de Brumadinho provocou a morte ou o desparecimento de mais de 300 pessoas, o incêndio no contêiner que servia de dormitório matou dez jovens jogadores do Flamengo, a apuração do assassinato de Marielle e seu motorista nos levou a um tráfico de armas do criminoso de mais de 110 fuzis, o massacre na escola de Suzano segue incompreensível para nós. São todos desastres marcados por nosso descaso, nossa falta de cuidado com o outro. E só pensamos, como reação, em nos armarmos.
É como se estivéssemos desistindo do país que sonhamos ser, em nome de uma arma que possamos sempre carregar para nos livrarmos do outro, o nosso espelho. Tenho o hábito de ler cartas de leitores aos jornais. Semana passada, li uma de missivista do GLOBO, publicada em 9 de março, em que ele escrevia o que segue:
“Precisamos nos acostumar com nosso presidente, que fala com o coração puro de brasileiro, é gente como a gente e não precisa pensar para falar porque não faz parte e não pertence ao tradicional mecanismo político que existia nos governos anteriores. Essa é a diferença de nosso presidente Jair Bolsonaro”. É isso o que de fato queremos e esperamos de nosso presidente ou de qualquer outra de nossas autoridades? É assim que o Brasil deve ser governado? Sem pensar?
O neurocientista António Damásio, professor de Harvard, filho de imigrantes portugueses, nos advertiu recentemente de que é necessário “educar massivamente as pessoas para que aceitem os outros”. Porque, “se não houver educação massiva, os seres humanos vão matar-se uns aos outros”. De uma vez por todas, não é isso o que queremos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário