- O Globo
Quando chegou diante de nós, já estávamos todos de pé, tentando imaginar o que havia acontecido
A zona cirúrgica fica no subsolo do hospital, repleta de tecnologias, as mais avançadas da América do Sul. Mas nós esperávamos no quinto andar, para onde nos haviam enviado a fim de aguardar o resultado da operação em nossa filha. Na salinha de espera, eu e minha mulher estávamos cercados de amigos. A tensão já era naturalmente imensa, pela natureza do lugar. E ainda trazíamos conosco o que faltava para tornar exasperante aquela tensão.
(De tal modo que só sei escrever sobre isso, embora pudesse falar de outras coisas. Como a mensagem que recebi semana passada de Haroldo Costa, me contando que a primeira aparição de Chico Buarque na TV Globo se deu em 25 de outubro de 1966, num festival de música inventado por Walter Clark e dirigido por ele, Haroldo).
O doutor cirurgião, um craque, apareceu na porta do elevador acompanhado por colaboradores. Vindo do subsolo, o grupo conversava e, embora não distinguíssemos com clareza o que diziam, havia entusiasmo em seus gestos e palavras. O cirurgião os liderou em direção a nós.
Quando chegou diante de nós, já estávamos todos de pé, tentando imaginar o que havia acontecido. Ele me ofereceu sua mão mágica, da qual dependíamos tanto, e me disse que o caso era realmente grave. Mas a cirurgia acabara bem, tivera um bom resultado. “Estou mais animado”, nos disse. Nem sei direito o que me ocorreu. Joguei-me em seus braços, apertei seus ombros com força, como quem abraça um ser amado que não se vê há muito tempo. Acho que lhe agradeci o feito, com um simples mas profundo “obrigado”.
(Não pretendi falar mal do ex-presidente, em quem votei por duas vezes. Ao lado de Fernando Henrique, ele não foi expulso de campo, como Collor e Dilma, nem esperava no banco, como Itamar e Temer. Critiquei foi o comportamento do líder popular que não devia estar preso mas, já que estava, tinha que exercer de outro jeito o seu papel. Abel pediu demissão do Flamengo, a culpa é sempre de quem lidera).
Só então percebi a presença de dona Alice na salinha, sentada perto de nós, numa poltrona muito maior do que ela. Não sei se havia acabado de chegar ou se já estava ali quando chegamos, nossos sentidos estavam concentrados na nossa menina operada. Dona Alice sorria para nós, aquele bando de desmiolados abraçados ao doutor, comemorando seu sucesso e, portanto, o nosso. Ela sorria solidária, uma bênção modesta ao que acontecia. E ela nem sabia o que era, mesmo que o sorriso fosse tão sincero e generoso.
Entendi que dona Alice queria saudar nossa celebração, queria comemorar também. Tentei justificar nossa euforia: “É minha filha, senhora”. Ela não disse nada, além de dar-me os parabéns. Então lhe perguntei, como numa proposta de amizade: “E a senhora?”. E ela: “É meu marido. Ele acaba de ganhar um coração”. E, diante de meu espanto, acrescentou, sem nenhum pudor de sua alegria, naquele ambiente contido que dona Alice, uma senhora negra e de aparência modesta, não devia ter o hábito de frequentar: “Novo! Um coração novinho em folha”.
Sem detalhes desnecessários, dona Alice nos contou que há quatro meses seu marido esperava por um coração para transplante, numa fila imensa que ela achava que não ia acabar nunca. Outro dia, recebeu recado de autoridades, anunciando que uma moça de 24 anos havia morrido num acidente. Seu coração tinha sido preservado, e a família da moça autorizara o transplante. Dona Alice olhou para os lados, se certificou de que, àquela hora da madrugada, ninguém mais chegava à salinha do quinto andar, e nos confidenciou com malícia: “Uma moça de 24 anos! Já pensou como vai ser agora? Nem sei se vou dar conta do recado”.
(Temos que celebrar a semana que passou. Chico Buarque ganhou o Camões e dois filmes brasileiros foram premiados em Cannes. É uma resposta da inteligência brasileira. Não precisamos abrir guarda-chuva no vídeo, cantando na chuva sem dignidade, para provar que estamos fazendo as coisas que devem ser feitas para que o Brasil seja um país livre, justo e igual, em que se possa viver em paz).
Talvez arrependida, mas certamente encabulada, depois da piada dona Alice ficou séria e me perguntou por nossa menina. Eu e minha mulher lhe explicamos o que se passava. Mas, apesar da simpatia, ela não estava lá muito interessada na razão de nossa felicidade. Dona Alice apenas juntava sua euforia à nossa, comemorava o novo coração do marido por trás da celebração do sucesso temporário de nosso caso.
O elevador acabara de chegar, e os amigos que estavam conosco já o tinham ocupado, quando me lembrei de perguntar seu nome. “Alice”, ela me disse logo. “A senhora tem um sorriso lindo, dona Alice”, lhe respondi. Mas não sei dizer o que ela achou de minha observação, pois a porta do elevador começou a se fechar e meus amigos me puxaram para dentro dele.
Até essa sexta feira à tarde, dia 31 de maio, quando escrevo, nossa filha ainda não teve alta do tratamento. Não vou deixar de fazer o que faço, mas vou dedicar minha vida à minha menina, quando ela deixar o hospital.
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Flora Diegues faleceu na manhã de ontem, vítima de um tumor no cérebro.
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