Então
fica combinado assim: de agora em diante, está liberado mentir em sessão de
Comissão Parlamentar de Inquérito. Também não tem problema chamar o colega
parlamentar de “vagabundo” para melar um depoimento. E tudo bem escancarar ao
distinto público a constatação de que, afinal, a apuração das responsabilidades
pelo descaso no combate à pandemia da Covid-19 só não é mais importante que uma
ampla gama de conveniências políticas.
Qualquer
brasileiro medianamente informado sabe que o destino mais provável de uma CPI é
terminar em pizza. Mas as cenas exibidas ao vivo e em cores durante o depoimento do ex-secretário de Comunicação do governo federal
Fabio Wajngarten, na CPI da Covid, elevaram a expressão popular a um novo
patamar.
Primeiro
por causa da insistência do ex-secretário em desdizer tudo o que havia afirmado
à revista “Veja” em abril, numa entrevista cheia de recados subliminares ao
presidente da República e ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.
Em seis horas de exposição, Wajngarten recusou-se a repetir que o governo poderia ter comprado vacinas meses antes do que de fato ocorreu, negou ter afirmado que houve “dolo, incompetência ou as duas coisas” na ação do ex-ministro da Saúde e, mais de uma vez, tentou sepultar a versão de que Bolsonaro o havia autorizado a negociar a aquisição dos imunizantes, passando por cima do colega de Esplanada Pazuello.
Recorrendo
à desculpa de que estava doente, negou também ter aprovado a campanha
publicitária que se opunha ao isolamento social, mesmo depois que vídeos
daqueles dias o mostraram dizendo que continuava trabalhando normalmente, de
casa.
Mas
o recuo mais importante talvez tenha sido o menos notado pelos senadores:
depois de afirmar à “Veja” ter guardado e-mails, registros telefônicos e até
cópias de minutas contratuais para comprovar que trabalhou pela compra das
vacinas da Pfizer, Wajngarten sustentou na CPI que não dissera nada daquilo e
que não tinha nada.
Não
é possível garantir que a nova postura tenha a ver com as mensagens que o
ex-secretário recebeu nos últimos dias de emissários de Bolsonaro, mas é
altamente provável que tenha sido essa última declaração a senha que acionou o
resgate providenciado pelo filho Zero Um do presidente.
O
senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) chegou a tempo de ver o presidente
da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), recusar-se a prender Wajngarten, delegando ao
relator, Renan Calheiros (MDB-AL), a iniciativa de fazê-lo. Renan, que até
então insistia na prisão, recuou de repente com um “não vou fazer, em respeito
a Vossa Excelência”. Assim, abriu o flanco para Flávio chamá-lo de “vagabundo”
e dar a deixa para Aziz decretar o final da sessão.
Findo
o espetáculo, não faltou quem justificasse a atitude de Aziz como um movimento
estratégico para não desmoralizar a CPI e deixar aberta a possibilidade de prender Pazuello mais adiante.
Considerando
que a Advocacia-Geral da União está trabalhando para conseguir um habeas corpus
que garanta ao ex-ministro da Saúde o direito de ficar calado — expediente
bastante comum em CPIs —, dificilmente Pazuello terá chance de mentir como fez
Wajngarten.
É
claro que a investigação continua, a política é um jogo de estratégia, e a
realidade brasileira não autoriza ninguém a alimentar ilusões quanto à pureza
d’alma dos nossos parlamentares. Seria ingênuo imaginar que os veteranos da CPI
não se guiem por uma teia de interesses que extrapolam a preocupação com a
saúde dos brasileiros. Entram no cálculo desde a compra de tratores com
dinheiro do Orçamento até o posicionamento mais conveniente aos diferentes
partidos na disputa presidencial de 2022.
Mas
a política também é feita de símbolos, e, nesse particular, a mensagem de ontem
é inequívoca. Desde que tenha uma tropa de choque a seu favor, qualquer futuro
depoente da CPI da Covid pode ficar à vontade para mentir quanto quiser sem ser
incomodado.
Fica difícil imaginar desmoralização maior para uma Comissão Parlamentar de Inquérito que se propõe a apurar responsabilidades e a revelar a verdade, mas se acovarda diante de transgressões tão toscas e evidentes.
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