O Estado de S. Paulo
O que temos agora não é mais a ignorância da vacuidade, mas uma outra, a da overdose, a ignorância fabricada por algoritmos gelados e por tentáculos de silício
Quando alguém tenta imaginar o que seja a ignorância, a primeira imagem que lhe ocorre é o vazio. De fato, enquanto o saber tem para nós o aspecto de casa cheia e feliz, o não saber é seu oposto: um lugar macambúzio, desocupado e triste. O conhecimento lembra uma constelação de fagulhas inspiradoras, como um salão de janelas amplas, ensolaradas, cheio de gente bonita indo de um lado para o outro; a estultice é sombra e mutismo, um galpão deserto, escuro, sem ninguém e sem utilidade. O espírito dos sábios cintila em signos vibrantes, representações abstratas e sensibilidade de muitas claves; a massa cinzenta de quem não sabe nada é só um pedaço de carne amorfa, incapaz de qualquer contemplação. Portanto, é com acerto que temos o costume de dizer que as pessoas cultas têm uma vida interior rica e ativa, ao passo que os boçais têm a cabeça oca. Nada mais justo. Nada mais preciso. Nada mais óbvio.
Ocorre que isso mudou drasticamente. As novas
tecnologias alteraram em definitivo a textura da ignorância. Ela não é mais o
que sempre foi, não é mais uma cabeça oca, e já não decorre da escassez de
informação e de conhecimento. Na era digital, ela decorre do inverso: o excesso
de desinformação, de bugigangas do entretenimento, de quinquilharias
imaginárias e de fanatismos virtuais.
Hoje, a ignorância não é uma casa inabitada,
desprovida de ideias, mas uma edificação repleta de baboseiras desarticuladas,
uma gosma de densidade pesada que ocupa todos os espaços. E é pisca-piscante:
revestida de milhões de luzes feéricas, mais ou menos como um cassino em Las
Vegas, e lotada de gente robotizada perambulando aleatoriamente, como a Praça
dos Três Poderes sendo depredada no dia 8 de janeiro de 2023.
O que temos agora não é mais a ignorância da
vacuidade, mas uma outra, a da overdose, a ignorância fabricada por algoritmos
gelados e por tentáculos de silício. Estamos falando da ignorância artificial,
uma forma densa e totalizante que ocupa e vicia o hospedeiro. Ao contrário do
pensamento, que liberta e dá a ver, a ignorância artificial aprisiona e cega.
Ela é o insumo de maior valor nas estratégias dos autocratas: entregue de graça
para cada indivíduo, custa caro, muito caro, para a sociedade.
Por isso, os ignorantes de hoje não são mais
como os de antigamente. Não são como a terra bruta ou a flor inculta, que nunca
receberam o toque do jardineiro – foram adestrados pela selvageria e andam
carregados até as tampas de preconceitos e de estereótipos, destituídos de
imaginação própria. Não são um campo aberto à espera da luz e da letra – são
corpos fechados e blindados contra qualquer gota de cultura. A ignorância
artificial é a maior epidemia do nosso tempo.
E agora? Existirá cura para tamanha
enfermidade? Talvez não. Para entendermos melhor essa resposta, voltemos no
tempo. Mais exatamente, recuemos até a Grécia clássica. No Laques, de
Platão, o general Nícias, ao tratar do tema da coragem, comenta a hipótese da
criança que, por desconhecer o perigo, age com aparente destemor. Nícias
argumenta: nesse caso, a ação aparentemente livre de todo medo não traz nada de
audácia, é apenas falta de conhecimento. Com esse raciocínio, sugere que a
bravura verdadeira requer consciência do risco: para ser valente de fato, o
sujeito precisa ter instrução e juízo, precisa saber o que faz. Quanto aos
idiotas, patriotas ou não, a exemplo das crianças pequenas, jamais estarão à
altura da virtude da coragem.
Nícias, a exemplo de seus contemporâneos, vê
semelhanças entre a falta de ilustração do adulto e a inocência infantil: ambas
resultam da carência de saber, e por isso têm cura. Definidas pela ausência, as
duas podem ser superadas pela presença – a presença do logos, da educação
e da experiência. Em resumo, para essas duas formas naturais de ignorância,
existe remédio.
Para a ignorância artificial, porém, o
tratamento não tem a menor eficácia. Com sua substância maciça e, ao mesmo
tempo, maleável, a ignorância artificial fecha todas as saídas e barra todas as
entradas, de tal maneira que para os fanáticos não há educação ou experiência
que dê jeito: nenhuma informação de qualidade os alcança; nenhum conhecimento
os afeta. Os novos ignorantes foram abduzidos por uma argamassa de
obscurantismo luminescente que os impede de saber de si, de perguntar ao outro,
de duvidar do que veem, de repensar o mundo. Eles não têm senso de humor. A
ignorância da era digital os ocupa feito uma forma de trabalho que não os deixa
trabalhar. É uma forma de torpor que não os deixa gozar – e um bordão hipnótico
que não os deixa conhecer a si mesmos.
Ao menos no horizonte imediato, não há esperança. Nesses dias de tantas proezas tecnológicas e tantas máquinas miraculosas, não é apenas a inteligência que se tornou artificial, não é somente a intimidade que pode ser confeccionada pelos chips, não é apenas o espírito que pode ser replicado em laboratório. A ignorância também. A ignorância, quem diria, até ela, agora também é fabricada pela técnica.
2 comentários:
Simplesmente PERFEITO e BRILHANTE!
Excelente artigo!
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