segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Ruy Castro - Eles existem

Folha de S. Paulo

Vivemos em bolhas e, pela primeira vez, vi-me em meio a um grupo de negacionistas

Um bate-papo na sala de espera de um hospital pode ser mais torturante do que a perspectiva de um exame delicado ou a expectativa por um diagnóstico. Num mau dia, ouvem-se opiniões estarrecedoras. No meu caso, foi na semana passada, pela voz de quatro ou cinco homens e mulheres, todos articulados e com leitura talvez acima da média, num ambiente —um reduto médico— em que, se não acreditamos na ciência, não sei o que estamos fazendo ali.

De repente, falou-se da vacina contra a Covid. Dois deles admitiram que se vacinaram, mas a contragosto e só uma vez. Um casal à minha frente declarou que não se vacinou, e o marido explicou por quê. Eram contra a obrigatoriedade, temiam os efeitos colaterais —"trombose, AVC, enfarte"— e não acreditavam que uma vacina pudesse ser fabricada em um ano. A prova estava em que, citando uma estatística, morreram mais vacinados em 2022 do que não vacinados em 2021.

Outro na roda era um alemão, bem sacudido para os seus 70 e tal, com leve sotaque no português bem falado. Estava revoltado com a invasão de muçulmanos na Alemanha, "empesteando-a com suas doenças e obrigando o governo a sustentá-los à custa dos alemães". Um exemplo de que a imigração arruinava um país, segundo ele, era a Inglaterra, tão ocupada pelos indianos que, até há pouco, o primeiro-ministro britânico era um.

As chuvas em Porto Alegre, o furacão nos EUA e os ventos em São Paulo também não tinham a ver com extremos climáticos. Sempre aconteceram, a mídia é que não falava neles. E o degelo da calota polar era mentira —a Groenlândia há dois séculos era um jardim e hoje é uma geleira.

Temo que o leitor não acredite que ouvi esses disparates numa sala de espera de hospital há alguns dias. Eu também não acreditava enquanto ouvia. Vivemos em bolhas e ali me dei conta de que, até então, nunca me vira entre negacionistas hidrófobos. Mas eles existem e não eram cínicos, pareciam convencidos do que diziam. Perguntei ao alemão se, em sua opinião, a Terra era redonda ou plana. Ele riu: "Que pergunta é essa? Estamos falando a sério!". E fiquei sem saber o que ele achava.

 

6 comentários:

Anônimo disse...

"United Kingdom of Ipanema"

Anônimo disse...

O colunista fez um bom apanhado das crenças dos bolsonaristas MENOS radicais. Os radicais são como seu líder, defensor(es) da TORTURA e dos TORTURADORES! Acham que Trump não mente, só se engana de 10 em 10 minutos.

ADEMAR AMANCIO disse...

A humanidade perdeu o eixo,nunca tivemos eixo,sei lá,rs.

marcos disse...

"United Kingdom of Ipanema"

Além de covarde, invejoso. MAM

marcos disse...

Ruy Castro falando sobre música é maravilhoso, mas quando ele envereda pela politica ou sociologia não passa de um extremado à esquerda. O Alemão está errado? Tato quanto ele, que escreveu texto abjeto sobre hippies e não divulgado aqui, portanto, uma raridade. Penso que o alemão acerta ao falar sobre muçulmanos no geral e erra sobre hindus. Alias, tenho medo que Lula esteja enchendo o Brasil de terroristas, direto para Foz do Iguaçu. Extremos climáticos é palhaçada! A Terra está esquentando há 12 mil anos, mas os euro comunistas resolveram substituir a luta de classes pelo calor extremo após os anos 60... Se ele lesse poderia ter derrubado facilmente as argumentações contra a vacina, assim como sobre as estatisticas. Mas ele preferiu fazer piada irônica e ficou sem resposta... MAM

Anônimo disse...

Muito bem dito, Ruy Castro deveria se limitar a escrever biografias e falar de musica. Porque ele nao contestou os outros? faltava-lhe argumentos?