O Globo
O retorno conservador à vida doméstica
tradicional se mostra cada vez mais improvável diante do avanço da sociedade
No fim de novembro, um homem atropelou
propositalmente uma mulher, arrastando-a por mais de 1 quilômetro. Ela teve as
pernas amputadas. Os casos de violência aguda não cessam de aparecer, ampliando
as estatísticas de feminicídio no Brasil. Talvez valha a pena analisar isso
como problema mais profundo. A grande transição vivida pela sociedade merece
uma visão política mais ampla.
Nos Estados Unidos, o debate é intenso, como mostra Oliver Stuenkel. O que acontece com os homens, perguntam os analistas? O desempenho deles é mais baixo nas escolas e universidades, eles sofrem mais de depressão e alcoolismo e são mais inclinados ao radicalismo político. Um dos setores mais violentos da extrema direita são os celibatários involuntários (incels), que atacam feministas nas redes sociais, atribuindo a elas seu fracasso sentimental. Eles inspiraram um jovem que matou dez pessoas em Toronto.
Conservadores acham que o caminho é limitar a
ascensão profissional e educacional das mulheres. Segundo eles, isso afeta a
imagem masculina, baseada na expectativa de salários mais altos e menos tempo
para trabalhos domésticos. O problema é que o gênio não pode mais voltar para a
lâmpada. Duas em cinco famílias americanas têm mulheres como provedoras.
Como mostra Stuenkel em post sobre a crise
americana, as saídas apresentadas até agora para o problema não são muito
eficazes. O livro “Masculinidade”, do senador Josh Hawley, propõe coragem e
resiliência, conselhos que valem para todos, homens e mulheres.
No caso brasileiro, ainda é preciso avançar
nas políticas que garantem igualdade de condições para as mulheres. E sobretudo
tentar atenuar a violência desse período de grande transição. Um dos caminhos
que me parecem corretos desde o século passado é a criação de abrigos para
mulheres espancadas. Elas precisam sair de casa. Forçadas a conviver com o
agressor, muitas são assassinadas.
Mas não existe ainda reflexão sobre o que
fazer com a crise masculina, que, por meio da internet, torna-se muito parecida
com a dos Estados Unidos. O homem que atacou o site de Janja declarou que
conhecia os incels. Há muitas razões para tentar abordar a crise masculina numa
transição irreversível. A mais importante é evitar que as mulheres sofram. A
outra, mais estratégica, é evitar que essa frustração masculina seja canalizada
pela extrema direita e se revele como uma de suas alas mais combativas.
A onda de violência contra mulheres é apenas
uma face dessa imensa crise. Estamos no meio dela, não temos soluções prontas,
mas o debate precisa começar. Dos caminhos que surgiram, a radicalização dos
incels é a mais perigosa. O retorno conservador à vida doméstica tradicional se
mostra cada vez mais improvável diante do avanço da sociedade. Resta apenas a
adaptação construtiva, por meio de uma luta cultural em que se fortaleçam
modelos saudáveis de masculinidade, e o trabalho na educação levando em conta
que meninos e meninas enfrentam problemas específicos, evidentemente sem recuar
nas conquistas femininas.

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