Até aqui, todas as vozes, a começar pela da presidente da República, reconheceram como legítimo e democrático o movimento social insólito que ontem chegou ao clímax, em número de manifestantes nas ruas e na amplitude geográfica. Ontem, porém, dois traços preocupantes ficaram evidentes: a intolerância dos que protestam e a completa perda de controle por parte das vanguardas, permitindo que a violência e o vandalismo chegassem ao paroxismo. Dezenas de feridos e um morto por atropelamento na confusão, em Ribeirão Preto (SP). Quando a barbárie chega, os Poderes democraticamente constituídos precisam dizer algo mais que palavras de compreensão. É hora de uma palavra da presidente Dilma Rousseff.
Por mais que compreendamos as insatisfações difusas, seja com os serviços públicos ou com os políticos e com as instituições, não podemos transigir com a intolerância, que não combina com a democracia. Ela vem se manifestando no veto à presenças de partidos e organizações e na agressão a jornalistas e a participantes com outras vinculações. O movimento é "horizontal", como dizem, mas tem uma vanguarda, liderada pelo Movimento Passe Livre. Até agora, não deram uma palavra condenando o vandalismo. Depois dos excessos que cometeu em São Paulo, na quinta-feira, a polícia passou a ser por todos satanizada. Mas eu vi ontem, na frente do Congresso, as provocações injuriosas e as agressões físicas, como a cometida contra um PM com o mastro metálico da bandeira arrancada. As depredações do patrimônio, ontem, tiveram como símbolo doloroso a tentativa de incendiar o Itamaraty, joia da arquitetura que Oscar Niemeyer nos legou. A invasão não foi obra de "minoria exaltada", mas da multidão tomada por instintos primitivos. Esses jovens não tinham nascido quando a ditadura acabou, mas têm educação para saber que a democracia nos custou muito. A classe política tem suas culpas em tudo isso, mas é dentro do jogo democrático, por meio das instituições, que as coisas poderão ser resolvidas. E para isso, é preciso negociar. Incendiar não resolve.
O pêndulo
Os estacionamentos dos anexos dos ministérios nunca estiveram tão lotados de carros durante a noite como ontem. Aqui em Brasília, não há dúvida de que se trata de uma reação da classe média, e não das camadas mais pobres. Os governos do PT, em 10 anos, implementaram políticas focadas nos mais pobres e alcançaram resultados na redução das desigualdades. Mas a classe "média-média" mesmo, não a classe C emergente, acumulou ressentimentos com os serviços públicos ruins e com as práticas políticas nefastas. A classe média é o pêndulo do sistema, escreveu Helio Jaguaribe, em texto clássico. Nos últimos 10 anos, foi a maioria mais pobre do eleitorado que decidiu as disputas políticas. A classe média recupera agora seu protagonismo, com bandeiras que expressam anseios muitos amplos e justos. Mas agora, é preciso dar consequência ao movimento. Negociar e conquistar. É para isso, e não para vandalizar, que os movimentos acumulam força.
Uma evidência de que, pelo menos aqui, o movimento é de classe média, foi personificada pelos dois manifestantes que foram ao gabinete do presidente do Senado, Renan Calheiros. Acabaram não sendo recebidos porque o núcleo de estudantes e outros subgrupos da manifestação se recusaram a participar. Renan decidiu aguardar por encontro mais representativo. Francisco Paraíso Ribeiro de Paiva tem 25 anos e é advogado. Kayo José de Miranda Leite, da mesma idade, também é advogado e professor em duas instituições de ensino superior. Bem vestidos, falam com sotaque jurídico. Perguntei se tinham delegação do movimento. Disseram representar um dos muitos "subgrupos". Deram-me cópia do documento que, no dizer deles, "protocolizaram" no Congresso e no Palácio do Planalto, com a lista de reivindicações: mais investimentos em saúde, em educação, em segurança pública, transparência nos gastos com os estádios, reforma política e outras tantas. Que venham, mas sem nos aproximar da guerra civil. Esse "subgrupo", pelo menos, procurou a negociação. À elite política, cabe também sair da defensiva. Ontem, tivemos o Congresso e o Planalto sitiados.
Poesia no incêndio
O Congresso vazio e cercado lembrava muito A chegada dos bárbaros, poema do magistral Konstantin Kavafys: "Dentro do Senado, porque tanta inação?/Se não estão legislando, que fazem lá os senadores?/ É que os Bárbaros chegam hoje./Que leis haveriam de fazer agora os senadores?/Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis." O poema pode ser lido no blog da coluna.
Fonte: Correio Braziliense
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