É evidente que não é (essencialmente) por causa do aumento da passagem de ônibus, nem tampouco contra os pais ou contra as injustiças do país.
Ontem, dia 13 de junho, participei, um dentre algumas dezenas de coroas, da passeata que saiu do Largo da Candelária até a Cinelândia e de lá até a ALERJ e depois pela Presidente Vargas até a Central do Brasil. Participei acompanhando, batendo palmas e observando, em zigue-zague, os milhares de jovens que, auto-conscientes de suas vidas e de suas paixões, marchavam em alegre, mas contida, manifestação a propósito do aumento das passagens de ônibus. No fim da passeata encontrei meu filho de 18 anos, junto com outros colegas, todos em suas primeiras passeatas, já correndo das bombas e balas de borracha da policia. Um deles foi atingido quase no olho, tal qual a jornalista de São Paulo, soube depois.
Em certo momento divaguei que estava na passeata a favor das Diretas Já, em 1984, tal a festiva e distencionada atitude dos manifestantes. Melhor ainda: não havia um político comandando as massas, uma esperança ilusória de mudanças políticas, uma bandeira de fé. Os pequenos partidos políticos de retórica esquerdista estavam por lá, com suas bandeiras e suas tentativas de controlar, mas eram poucos militantes e não comandavam a massa. Todos pareciam saber que estavam tão somente ensaiando para algo que ainda não sabem o quê é e em quê vai dar, mas que almejam alcançar.
Quase todo mundo tinha menos de 30 anos, estudantes universitários e colegiais. Uns engravatados e umas vestidas de executivas desceram dos seus escritórios para acompanhar, meio embevecidos, alguns um tanto emburrados. Não havia corre-corre, nem empurrões, ninguém perdeu um chinelo no meio da multidão, não se bateu carteira, não rolava bebida, apenas um leve cheiro de erva aqui e ali, quase nenhum momento de azaração. Dois casais se beijavam na boca, sendo um de mulheres. Um único cabeção estorou em frente a um banco e alguns soltavam fraquíssimos foguetes de São João e até as infantis estrelinhas. Já se aproximando da Cinelândia, vi alguém embebendo um chumaço com algum liquido, mas logo constatei que estava tão-somente molhando sua máscara cirúrgica com vinagre. Dizem que para amenizar os efeitos do gás lacrimogêneo.
Caminhavam em grupos de rapazes e moças, certamente colegas, que se abraçavam com outros grupos, de outros colégios ou faculdades, ou conhecidos de redes sociais. Sim, as redes sociais funcionaram no chamamento à passeata.
Tudo parecia improvisado. Os cartazes empunhados por moças e rapazes, alguns com máscaras do farsante, eram de papelão com dizeres em lápis coloridos que mal se enxergava a dez passos de distância. Serviam para os amigos e os fotógrafos documentarem suas ousadias.
Um carro de som se arrastava no meio da multidão puxando as rimas e palavras de ordem. “Se a passagem não baixar, o Rio vai parar”, “Ô, ô, ô, Cabral é ditador”, “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. E o mais esperançoso: “Ô, ô, ô ... o povo acordou”. Em algum momento uma equipe da rede Globo foi encurralada na portaria da Caixa Econômica, e a Globo foi associada, numa rima engraçada, ao seu antigo apoio à ditadura.
Não havia palhaçada, gaiatices, nem palhaços, nem figuras esdrúxulas, como nas passeatas políticas da década de 1980. Nenhuma brincadeira de mau gosto, tampouco. Senti falta das figuras populares, das vestimentas extravagantes, do protesto escrachado; apenas as carrocinhas de cachorro-quente e refrigerante demonstravam que o povão estava presente, a trabalho.
Ao chegar na Cinelândia percebeu-se que a multidão estava compacta e era expressiva, quem sabe umas dez mil pessoas. E não se soube mais o quê fazer, como concluir o acontecimento. Ninguém para fazer um discurso de glória pela manifestação pacífica e orgulhosa, para fazer novos encaminhamentos, para chamar a novos propósitos. Faltou o gozo. O carro de som não podia subir nas calçadas da Praça da Câmara Municipal e virou pela Evaristo da Veiga rumo à ALERJ. Lá deu-se o momento de espetáculo, mas não da glória da passeata, ao subir as escadeiras do Palácio Tiradentes e se agarrar à estátua que adorna a Assembleia Legislativa. Mas nenhuma jovem ousou desfazer-se da blusa e do alto do pedestal empunhar a bandeira da liberdade. Pudor e acanhamento, mas falta muito ainda para a glória ressurgir.
Até aí a policia olhava de uma distância regulamentar, aceitável para todos, que não denotava provocação. Os manifestantes apenas registravam sua presença em fotos, até deles próprios de costas para o símbolo da repressão. Porém, ao se dirigir pela 1º de Maio e dobrar para a Getúlio Vargas, começou a fuleragem. Sacos de lixo foram chutados e rasgados e um grupo de umas 30 pessoas saiu quebrando algumas vitrines, grafitando muros e destroçando as paradas de ônibus. A polícia se eriçou e a porradaria começou.
Foi quando a TV Globo interrompeu sua malsinada novela de fofocas sobre quem é pai de quem, para mostrar as cenas de vandalismo da multidão e demonstrar sua falta de compostura. E provar que tudo não passa de jovens descomprometidos com a realidade do país, sem razão e sem motivos.
Eis o busílis da questão. Há quem ache que tudo não passa de desventuras fúteis o que os jovens estão fazendo. Os noticiários televisivos nos levam a crer que é isso mesmo. Mas uma pesquisa da DataFolha de hoje mostra que mais da metade da população está a favor das manifestações dos jovens indo às ruas. Por que será?
Tem algo no ar que não pode ser desmerecido por comentários derrisórios de jornalistas de plantão e análises superficiais de sociólogos acadêmicos. Uns acham que é ato inconsequente de jovens mimados, falta do quê fazer; outras, que é gente incapacitada para o diálogo. Por que uma comissão de jovens não dialoga com o prefeito? Aos que os jovens desaforadamente respondem: “Como pode haver um diálogo entre o c... e a p...?”
Não se dialoga com a máquina da modernidade líquida, como poderia dizer Zygmunt Bauman. O diálogo sempre é falso e se dá em condições de poder do mais forte e com propósitos farsantes. A máscara do farsante cai bem a propósito da ironia dos jovens.
O Brasil – e alguém diria, o mundo – parece ter virado uma farsa cheia de mentiras, conversa mole, enganações e espetáculos. O derramamento de dinheiro para a Copa, para as Olimpíadas, se contrasta com as ruas esburacadas, com os estádios mal feitos, com as leis ridiculamente draconianas, com as sempiternas filas de hospitais, com a educação às aparências sem sentido, com o trânsito ruim demais, os trens cheios e demorados, com os ônibus – sim, os ônibus e as passagens – para deixar todo mundo revoltado, doente de frustração e de não saber o quê fazer mais. Quase todo mundo já encheu o saco de tudo isso, mas quase ninguém sabe como dizer, agir e mudar. A indiferença prevalece como auto-defesa: “O que se pode fazer, vai tudo continuar do mesmo jeito”, foi o que ouvi de um homem que olhava o acontecimento.
Esta é uma juventude do falso bem-estar brasileiro. Nasceu bem, cresceu sem inflação galopante, sem salários escorchantes, num tempo em que o Brasil foi aos poucos paralisando. Cada um por si, que se dá um jeito. O que está aí é o que é.
Mas, por ironia à modernidade líquida, é uma juventude que quer ao menos cuidar de si. Manifesta-se pelo cuidado com amigos. Os grupos se formam naturalmente, por afinidade ou proximidade, e gostam de estar próximos. Cada grupo cuida de si, mas a inveja ou rivalidade grupal, que já foram tão naturais em outros tempos, não prevalece. Para onde derramar esse amor, ou talvez, carinho, se não há como organizar o mundo de outro modo?
Os garotos das passeatas são condenados ipso facto por serem de classe média. Mas a classe média aí está e crescendo, segundo o governo. Aliás, confundindo classe média com consumo de bens, todos querem ser classe média. Em outros tempos os bem-pensantes diziam que a classe média é quem puxa o povão. Bem que esses garotos gostariam de puxá-lo para a ribalta da luta. Mas o povão não vem porque nada lhes é confiável, ainda, muito menos para protestos contra o preço de passagens e promessas de boa educação para todos.
Os que já passaram do meio caminho da vida também estão frustrados e reclamam pelos cantos como que em desafogo. Perderam a vontade de transformar suas vidas, muito menos as injustiças do país Persistem na farsa do “deixa como estar para ver como é que fica”.
Os jovens haviam se acostumado com isso, mas procuram um meio para sair. Defendem índios e quilombolas, o vetusto Museu do Índio, qualquer pequena causa que lhes traga de volta a identidade de ser no mundo. Não sabem para onde vão, mas quem o sabe?
Quando é a próxima passeata?
Mércio P. Gomes, Antropólogo, professor do HCTE-UFRJ
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