– O Estado de S. Paulo
No turbilhão de factoides e jogos de cena de que é feita a política atual, não pode passar despercebida a emoção que tomou conta da presidente Dilma Rousseff na cerimônia de entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
Foi densa e sincera, comovendo os que a presenciaram. Mostrou uma presidente ciente do peso simbólico do ato e ao mesmo tempo enraizada em sua própria biografia e nos fatos históricos que protagonizou.
Ainda que embargada pela emoção, Dilma soube reconhecer o terreno minado que pisava. Reiterou a defesa da Lei da Anistia (1979) e dos “pactos políticos que colaboraram para a conquista da democracia”. Pôs-se longe do ressentimento ou do desejo de vingança.
Muita coisa foi dita e continuará a ser dita a respeito do trabalho da CNV. Aplausos, ressalvas e críticas permanecerão a acompanhar a conversão em História de uma atividade que jamais foi unanimidade nacional ao longo de seus quase 3 anos de vida. Resistências e recusas persistirão, tanto da parte de militares — que não aceitam o papel de algozes e julgam com isso defender a integridade das Forças Armadas –, quanto de militantes de esquerda, que continuarão a defender a punição exemplar dos agentes da ditadura e mudanças na Lei da Anistia.
O produto mais importante da CNV, porém, creio, não foi seu relatório final, minucioso, contundente, estarrecedor. Trata-se sem dúvida de uma peça de impacto e relevo, que lista e responsabiliza centenas de pessoas, de baixo e altíssimo escalão, como “autores de graves violações dos direitos humanos” e de crimes contra a humanidade. Precisamente por isso, mais que uma denúncia reveladora, a Comissão fixou um novo parâmetro para se compreender um período particularmente doloroso da história nacional. Oficializou este parâmetro, inserindo-o nas narrativas do poder estatal e fazendo, assim, com que a tortura e a violência da ditadura possam agora ser tratados não como atos insanos de alguns fanáticos desequilibrados, sádicos ou especialmente cruéis, mas como parte de uma política de Estado e como um conjunto de procedimentos que integraram a dinâmica da tomada de decisões de instituições estatais estratégicas, como são as Forças Armadas, comprometendo de alguma maneira suas hierarquias.
A Comissão teve, portanto, uma função pedagógica que não pode ser desprezada. Ela ajudou a opinião pública a lidar com o passado, com erros e crimes acumulados, com nódoas que precisam ser compreendidas e processadas. Contribuiu para que as novas gerações de brasileiros adquiram uma visão mais abrangente da história de que fazem parte. Tornou oficial uma visão alternativa às versões até então prevalecentes nos círculos militares e em muitos outros setores da sociedade.
A partir de agora, estaremos todos obrigados a dar outros passos à frente. Sem virar páginas e sem esquecer, mas também sem partir para revanchismos e intransigências. A verdade dura dos fatos está aí, ao alcance dos olhos, com toda a implicação que disso deriva.
Boa parte dos militantes de esquerda que travaram a luta armada nos anos de chumbo já reconheceu o erro daquela opção. Não foram poucos os que fizeram publicamente a difícil autocrítica. Muitos dos assassinados e desaparecidos, porém, não foram guerrilheiros, a começar, por exemplo, dos militantes do PCB, uma das forças políticas dizimadas na época. Seja como for, é justo que as famílias de todos esses militantes esperem no mínimo o reconhecimento de que as mortes ocorreram em circunstâncias estranhas e queiram ouvir pedidos de desculpas. Pode-se pensar numa contrapartida, a de um recíproco pedido de desculpas por parte dos que fizeram vítimas com as ações armadas. Mas não há como varrer para baixo do tapete fatos e verdades que têm sido negados há tempo e que precisam ser assumidos.
As Forças Armadas, por sua vez, são grandes e importantes demais para continuarem a carregar pela história o fardo da tortura, para permanecerem em silêncio ou agarradas a versões protocolares dos crimes daqueles anos, versões estas que invariavelmente as inocentam e as dignificam como “salvadoras da Pátria”. Tal atitude não bate com o bom senso e não ajuda. Uma boa dose de coragem e humildade reorganizaria o quadro e emprestaria à história militar brasileira uma dimensão democrática de cuja falta as Forças Armadas se ressentem.
É este o sentido maior da recomendação feita pela CNV de que as Forças Armadas reconheçam “sua responsabilidade pela ocorrência de graves violações de direitos humanos”. A ditadura militar acabou já faz tempo. É hora de ela passar definitivamente para a história, deixando de assustar os vivos. É o melhor modo de isso acontecer é mediante um amplo e generoso mea culpa dos que foram projetados na cena dos acontecimentos.
O esforço terá de ser feito por todos. Quanto mais a luz forte do dia iluminar as armas e os porões da história, mais energia teremos para modelar o futuro, cicatrizar feridas e pacificar a sociedade.
Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp
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