• Sociedade pagou com o esquecimento o preço do progresso
- Valor Econômico
Delegacias de polícia, em muitas cidades do Brasil, só funcionam porque moradores, associações de bairros, lojistas e empresários doam - de viaturas e computadores a piso, pintura, geladeira ou televisão. Em muitas delas, placas alusivas às doações são afixadas nas paredes. Policiais penhorados agraciam seus doadores com a segurança da comunidade e a defesa de seu patrimônio.
A manutenção de delegacias, e a defesa do patrimônio é obrigação do Estado, mas as doações acabam sendo aceitas como parte do envolvimento da sociedade na segurança das comunidades. Alguns Estados já adotaram até protocolo para essas doações, que devem ser comunicadas ao comando policial e publicadas no Diário Oficial do Estado.
Ao fazer doações, as comunidades não se responsabilizam por eventuais torturas a presos que venham a ocorrer em suas dependências. A integridade física de deliquentes presos também são responsabilidade do Estado.
A tortura policial não começou com a ditadura de 1964, mas a impunidade vigente nos últimos 26 anos de Estado de direito parece naturalizá-la.
O relatório produzido pela Comissão da Verdade responsabiliza 377 militares e agentes da repressão pela tortura de 1.843 pessoas, e pela morte e desaparecimento de outros 434.
Não há responsabilização civil dos episódios relatados pelo relatório, mas quase tão importante quanto saber se o Judiciário e o Congresso levarão à frente as recomendações da comissão pela punição dos responsáveis diretos pelos crimes da ditadura é conhecer a participação da sociedade brasileira na sustentação do regime de exceção.
Estão lá com nome e sobrenome banqueiros, empreiteiros, industriais, fazendeiros, empresários da comunicação, parlamentares, funcionários públicos, advogados, médicos, jornalistas, padres e donas de casa católicas que além de marcharem e orarem contra o comunismo subsidiaram ações da ditadura e foram por elas beneficiados.
Muitos dos que lá estão citados sempre poderão argumentar que desconheciam a prática da tortura nos porões do regime que apoiavam. Mais difícil é aceitar que a sobrevivência da tortura, frequentemente denunciada na ordem democrática, continue a ser ignorada como um mal tão banal quanto necessário.
Há apenas quatro anos, quando o Supremo Tribunal Federal foi provocado sobre a Lei de Anistia, o ministro Marco Aurélio de Mello, em entrevista, justificou seu voto contrário à revisão argumentando que a ditadura havia sido um 'mal-necessário' diante do 'mal que se avizinhava'.
Ao ser indagado esta semana sobre a possibilidade de o relatório provocar novas ações no Supremo, Mello manteve sua posição: "Precisamos colocar na cabeça que anistia é esquecimento".
Na narrativa, agora oficial, dos crimes da ditadura, o passado é escovado a contrapelo para não ser repetido no presente. Além da comissão, estão na contramão de Mello o presidente do Supremo, Ricardo Lewandovski, que foi voto vencido em 2010, e, aparentemente, o ministro que já desponta como a principal liderança do tribunal, Luis Roberto Barroso. Sem entrar no mérito, Barroso já disse que a questão precisa ser reexaminada à luz da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que sentenciou o Brasil a investigar e punir os crimes da ditadura.
No site das Nações Unidas que congrega comissões da verdade em 36 países (www.usip.org/publications/truth-comission-digital-collection) vê-se como as decisões de cortes internacionais e a pressão popular reabriram processos dados como encerrados no mundo inteiro. No Chile, foram necessárias duas comissões para encarcerar Augusto Pinochet. Na Argentina, o que pretendia ser o 'punto final' acabou ganhando uma vírgula e levando militares à prisão. No Peru, a comissão apontou violações aos direitos humanos, o presidente se desculpou mas a pressão popular acabou derrubando a lei de anistia e prendendo Alberto Fujimori.
No Brasil, a fracassada articulação por um pedido de desculpas das Forças Armadas visava a esfriar ânimos e evitar que a corda esticasse no governo de uma torturada.
Ainda não há pressão popular pela revisão da Lei de Anistia. Entre os brasileiros que têm saído de casa para protestar contra a corrupção há eleitores tucanos e adeptos dos ideais da família Bolsonaro na política. O patriarca ocupa a tribuna da Câmara para dizer que uma parlamentar não deve ser estuprada porque não merece e o primogênito sobe armado em palanque para pedir o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Os dois permanecem com seus mandatos de deputado federal e, entre os partidos que se movimentam para cassar o deputado do Bolsonaro pai não há nenhum de oposição.
Na Constituinte de 1988, PSDB e PT subscreveram juntos uma emenda que tentava emplacar a tortura como crime imprescritível. Perderam. Se abraçar causas populares pelo fim da anistia o PSDB tem uma oportunidade para se livrar da companhia dos Bolsonaros em seus palanques.
Sem a companhia da oposição só restará a pai (PP) e filho (PSC) a base de apoio à presidente Dilma Rousseff.
A mobilização pelo fim da Lei da Anistia depende de uma sociedade que resolveu pagar com o esquecimento o preço do progresso.
Tome-se os dois principais articuladores do projeto de lei que criou a Comissão da Verdade em 2011, o ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, e seu então assessor, José Genoino. Para viabilizar a aprovação da Comissão, ambos defenderam a permanência da Lei da Anistia.
Torturado pela ditadura, Genoino hoje cumpre prisão domiciliar por ter assinado a papelada do mensalão. Nelson Jobim tornou-se um dos mais influentes negociadores da linha de corte que governo e empreiteiras pretendem colocar na Lava-Jato para evitar que o prosseguimento das investigações parem o país.
Quatro das empreiteiras envolvidas na operação estão descritas no relatório da Comissão da Verdade como apoiadoras e beneficiárias do regime de exceção, algumas das quais à sombra de investimentos capitaneados pela Petrobras desde sempre.
O relatório da Comissão da Verdade e a denúncia oferecida ontem da Lava-Jato são capítulos de uma mesma história. O progresso voou nas asas da impunidade e agora ameaça estacionar no governo de uma jovem torturada aos 20 anos. Motivo de sobra para ela chorar.
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