• Produtora foi a responsável por clássicos de Glauber Rocha, como 'Terra em transe'
Carlos Helí de Almeida – O Globo / Segundo Caderno
RIO - Houve um tempo, no Brasil, em que os cineastas saíam de faculdades de ciências exatas, os filmes nacionais eram produzidos com empréstimos em banco, e as classes mais populares lotavam as salas de cinema — inclusive as que exibiam títulos do Cinema Novo, considerados “cabeça” demais. Fundada em junho de 1965 por um grupo de jovens realizadores, entusiastas do movimento cinemanovista, a Produções Cinematográficas Mapa Ltda, que hoje atende pelo nome de Mapa Filmes, é um ícone desse capítulo de quase ficção científica da história do cinema pátrio.
Foi de lá que saíram clássicos como “Terra em transe” (1966), de Glauber Rocha (1939-1981), “A grande cidade” (1966), de Cacá Diegues, e “Cabra marcado para morrer” (1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014). Muitos deles representaram o país em importantes festivais estrangeiros e até saíram de lá premiados, como “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber, vencedor do prêmio de direção em Cannes. E não é por menos que as cinco décadas de atividade da produtora serão homenageadas mês que vem pela programação do Instituto Moreira Salles e do Canal Brasil.
— A Mapa foi criada em uma época em que os diretores, às vezes, iam para o set vestidos de paletó e gravata, porque no meio da tarde precisavam encerrar as filmagens do dia para ir ao banco resolver as pendências com os “papagaios” (notas promissórias) da produção — recorda Zelito Viana, de 77 anos, que criou a empresa junto com Glauber Rocha, Walter Lima Jr., Paulo César Saraceni (1933-2012) e Raimundo Wanderley Reis, ligado ao Banco Nacional. — O Chico (Anysio, irmão do produtor, morto em 2012), aliás, avalizou muitas notas da Mapa, sem saber, porque acabei aprendendo a falsificar a assinatura dele!
Sugestão de Glauber Rocha
Dirigido por Walter Lima Jr. e lançado no final de 1965, “Menino de engenho”, adaptação do livro de José Lins do Rego, foi o primeiro filme com o selo da Mapa. O nascimento da produtora carioca, no entanto, começou a ser traçado no ano anterior, quando Leon Hirszman (1938-1987) convidou Zelito, então um engenheiro da indústria metalúrgica, para trabalhar como produtor de cinema. Pouco tempo depois, durante uma reunião entre cineastas no Teatro Opinião, convocada para decidir o destino de “Cabra marcado para morrer”, interditado pelo recém-instaurado governo militar, Glauber sugeriu que Zelito abrisse uma produtora com ele.
— Na época, ele era um dos produtores do “Menino de engenho”, e estava querendo uma empresa para administrar as contas do filme, e assim poder produzir outros. O longa do Walter, que era um dos sócios originais, foi finalizado pela nossa companhia. Eu mesmo cheguei a narrar o trailer do filme — lembra o produtor cearense, na sala de reuniões do prédio que abrigou, nos últimos 40 anos, a casa da família e os departamentos da produtora, numa rua sem saída do Cosme Velho. — Depois do quinto assalto, eu e minha mulher nos mudamos para Ipanema. Mas a produtora continua aqui.
Cacá e Leon chegaram a ser convidados para serem sócios da empresa, mas declinaram da oferta. A Mapa acolheu os projetos “dos amigos do Glauber”, partidários ou não do Cinema Novo, que atravessava um de seus momentos mais criativos. A ideia era fazer filmes rápidos, baratos e rentáveis, como “Menino de engenho”, visto por mais de um milhão de espectadores. Naquele mesmo ano, um grupo de 11 cineastas, entre eles Luiz Carlos Barreto, Roberto Farias, Joaquim Pedro de Andrade e o próprio Glauber, fundou a distribuidora Difilm, que tinha como função fazer circular a produção da época — em 1966, ela foi responsável pela distribuição de 80% da produção brasileira.
— Naquele tempo, ainda era possível fazer filmes com orçamentos irrisórios, uma equipe mínima, que trabalhava praticamente de graça, por amor ao cinema. Acho que o (fotógrafo) Dib (Lutfi) era um dos poucos técnicos que ganhavam um salário. Hoje, tudo envolve um estrutura enorme, e muita verba. “Villa-Lobos, uma vida de paixão”, que lancei em 2000, tinha 120 pessoas na equipe; filmamos “O Dragão da Maldade” com 12! Não se paga menos de R$ 150 de alimentação por dia, por cabeça, em um set. Fizemos “A grande cidade” (1966), do Cacá, com sanduíches da Genial — compara o produtor. — Herdamos essa estrutura gigante de hoje dos realizadores que vieram da publicidade.
Parte da trajetória da produtora poderá ser revista na programação das homenagens agendadas para junho. A mostra Mapa 50 Anos, organizada pelo Instituto Moreira Salles, exibirá títulos de diversas fases da companhia, como “Menino de engenho”, “A grande cidade”, e “Os condenados” (1974),
“Avaeté, a semente da vingança” (1984) e “Villa-Lobos”, de Zelito. O Canal Brasil vai disponibilizar em sua grade filmes como “Cabra marcado para morrer”, “Quando o carnaval chegar” (1972), de Cacá, e “Terra em transe” (1966), de Glauber. A Escola de Cinema Darcy Ribeiro, a Casa de Cultura Laura Alvim e o Museu de Arte Naïf também participarão do aniversário da Mapa, mas ainda não fecharam o cronograma de atividades.
Ao longo das décadas, a Mapa perdeu seus sócios originais e diversificou suas atividades para se adaptar aos altos e baixos do audiovisual brasileiro — já produziu comerciais, especiais (“Lambada”) e séries (“Confissões de adolescente”) para a TV aberta e, mais recentemente, programas para canais por assinatura. O cinema deixou de ser uma prioridade.
— Fazer filmes, que era uma coisa muito prazerosa, ficou muito chato, aborrecido. É como diziam: o compositor cria, o cineasta presta contas. Hoje, um diretor tem que ser um gestor de finanças e de talentos. Minha esperança é a tecnologia. Só ela poderá trazer uma nova revolução para o cinema — diz Zelito.
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