- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O Brasil retrógrado custa caro. Para amaciar a consciência dos deputados que poderiam assegurar o mandato presidencial no embate recente, o governo comprometeu mais de R$ 20 bilhões. Foi para saciar a fome de benefícios tópicos do localismo brasileiro. Mais uma derrota do nosso republicanismo de mera colagem artificial de instituições modernas na armadura de um arcaico municipalismo, cujas funções sofreram poucas mudanças desde a criação do primeiro município brasileiro, São Vicente, em 1532. Funções alimentadas por recíprocas dependências dos que podem muito em relação aos que nada podem.
Somos dominados pela suposição completamente falsa de que o Brasil só pode ser moderno e desenvolvido se dominado pelo absolutismo do lucro. Os números astronômicos das propinas amaciantes semeiam a generalizada desconfiança de que medidas duras em relação aos ganhos e direitos já modestos dos que vivem de trabalho e salário são obra de quem não sabe o que é desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.
Estamos em face de duas anomalias associadas. De um lado, a força política dos municípios e das regiões, que elegem os deputados federais e os senadores. Historicamente, as demandas municipais, desde a República, vêm colidindo com demandas propriamente nacionais.
Despesas com a educação superior, com as Forças Armadas, com rodovias e ferrovias, com as questões policiais de natureza federal, com a saúde pública, com a pesquisa científica, com a questão fundiária, com a questão indígena, com as questões relativas à emancipação dos brasileiros de suas carências e misérias, são frequentemente sacrificadas em nome da precedência dos gastos dos políticos do localismo.
O Brasil nacional tem sido o grande derrotado em face do Brasil municipal. Estamos vendo isso todos os dias no abandono da reforma agrária, no desamparo das populações indígenas despojadas de suas terras, de posse imemorial, nas deturpações da representação política.
De outro lado, a fragilidade política da nação em face da aldeia criou uma elite política negocista e vulnerável, incapaz de dar nascimento a uma elite propriamente nacional, que pudesse assegurar o equilíbrio justo entre o Brasil local e o Brasil nacional.
No entanto, não é no plano das questões nacionais que está, propriamente, o Brasil real, o Brasil de carne e osso. É no plano das questões locais que a população imagina o que possa eventualmente ser o Brasil que julgam nas eleições, porque é o Brasil de sua vida cotidiana, do pão nosso de cada dia, da família, do que nos resta do espírito e da cultura comunitários. O Brasil que enxergamos, mas que não nos enxerga.
Apesar das substanciais diferenças entre âmbitos espaciais, o Brasil nacional vota com a consciência do Brasil local. Quando deputados federais exibem evidências de sua cultura política nas melancólicas falas com que justificam seus votos em questões candentes, ficamos sabendo que são os porta-vozes de uma ideologia de província e de toscas e patriarcais concepções de família, que pensam o Brasil como mera extensão dos municípios que majoritariamente os elegeram. O Brasil nacional tem que negociar suas metas e o atendimento de suas carências propriamente nacionais em condição muito desfavorável, com o Brasil municipal, a nação e a pátria subjugados por bairros e distritos.
O Brasil localista e do atraso é o Brasil do minimalismo popular. Mas o minimalismo popular também tem os seus problemas. Sua concepção pobre de um Brasil dos pobres apenas sacramenta a pobreza como graça divina, a do despojamento, da desambição, do inconformismo conformista que nega as conquistas humanas só possíveis na competência para gerar mais riqueza do que a meramente necessária à mera sobrevivência dos virtuosos.
As esquerdas, com razoável clareza, têm questionado o outro minimalismo, o minimalismo tecnocrático. Aquele que, em nome da maximização da economia de grande escala, impõe ao país o abandono das obrigações do Estado para com todos aqueles que são apenas simples cidadãos, os credores que são tratados como devedores. As obrigações da justiça social, da decência política, do amparo aos desvalidos, da opção preferencial pela educação de alto nível, da igualdade como parâmetro de referência de todas as suas políticas. A ideologia do minimalismo oficial gesta e justifica as técnicas de usurpação de direitos, não em nome do país, mas em nome daqueles que vivem do poder e de parasitar o poder.
É significativo que na ceifa de custos e irracionalidades do sistema econômico não se ceife os excessos do poder político, dos três poderes, o descabido do demasiado que dá aos que mandam estilos e modos de senhores feudais.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).
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