quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Maria Cristina Fernandes: Os vilões nacionais

- Valor Econômico

O divórcio que deu luz a Bolsonaro e ao Centrão

"Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo". Ulysses Guimarães usou o plural majestático no discurso de promulgação da nova Constituição, prestes a completar 30 anos. O pemedebista estava acompanhado, naquela sessão, pelos ex-companheiros de partido, fundadores do PSDB, com quem havia liderado o movimento pela constituinte.

No ano seguinte, disputariam apartados sua primeira eleição presidencial. Ulysses acabaria abandonado por seu próprio partido e Mário Covas, atropelado por um trator que prometia um capitalismo mais colorido do que o seu. No segundo turno, pemedebista e tucano subiram no palanque do líder operário Luiz Inácio Lula da Silva. Foi a última vez foram vistos todos juntos. Ao chegarem ao poder, tucanos e petistas trataram de alijar uns e outros de suas alianças.

Em 2014, um quarto dos eleitores se definiram na última semana antes do primeiro turno. Ainda que esta flutuação se mantenha, Geraldo Alckmin não é o candidato a se beneficiar dela. Em sua oitava disputa presidencial, o PSDB ruma para a sexta derrota. O que sobrar do partido será disputado por Antonio Anastasia ou João Doria, a depender do resultado das eleições em Minas e São Paulo. Um permanece na órbita do aecismo, coveiro do PSDB, e o segundo, ruma para se aliançar com o bolsonarismo, de situação ou de oposição.

Tucanos com três décadas de militância preveem que, em caso de derrota, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso terá dificuldade em usar o plural majestático no segundo turno em favor de Haddad. Os ex-correligionários de Ulysses hoje parecem ter mais ódio ao PT do que um dia tiveram pela ditadura. Grande parte da base social do PSDB, a classe média urbana, já migrou para Bolsonaro, o que pode levar o partido, num segundo turno, a ficar onde sempre esteve, em cima do muro.

As origens do PSDB e a demografia do país o inibiram a ocupar o vácuo histórico da direita. Valendo-se de estruturas mais capilarizadas que os partidos, como forças armadas, polícias, igrejas, fermentadas pela indignação, o bolsonarismo firmou-se no espaço que os tucanos resistiram, até aqui, a ocupar.

No outro polo, o PT, radicalizado pela prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também voltou a mobilizar. Hoje tem menos militantes que o bolsonarismo, mas se um agrega pela violência e pela corrupção, o outro o faz pelo empobrecimento da população. Agigantados, os dois polos espremeram o centro que um dia o PSDB liderou.

Mas Alckmin não ruma sozinho para uma derrota eleitoral. Corre o risco de se fazer acompanhar por muitos dos parlamentares tucanos que custam a emplacar sua recondução ao Congresso. O PT, engatado no lulismo, tende a manter bancada e o centrão, a aumentá-la, em grande parte pelo usufruto de benesses eleitorais das políticas públicas de um governo que dominou do começo ao fim. Só o primeiro-ministro Michel Temer sairá reprovado da censura eleitoral ao seu gabinete.

O ocaso tucano no Congresso é quase tão importante para o que está por vir quanto mais uma derrota do partido na disputa presidencial. Um PSDB fraco deixa os grandes conglomerados empresariais e financeiros desprovidos de seus representantes mais orgânicos. A restrição do financiamento empresarial liberará a nova legislatura a oferecer uma aliança em novas bases ao presidente a ser eleito. Seu principal avalista é o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, forte candidato a permanecer no cargo.

A pauta não será prioritariamente a das grandes empreiteiras, bancos ou indústrias de bebidas, mas aquela que o Centrão avaliar como a necessária para uma aliança com o Executivo que lhe permita uma ocupação mais proveitosa da máquina pública.

O exemplo usado é o da passagem de José Serra pelo Ministério da Saúde, com a cruzada antitabagista e a guerra dos genéricos. Calibrado para outros setores, o movimento ameaçaria fazer vítimas nos serviços e na indústria nacional. Mas há medidas mais comezinhas, como a quebra de monopólio da impressão da carteira de motorista, por exemplo, um negócio milionário, nas mãos do Denatran.

A avaliação é que, da regulação da propaganda de bebidas alcoólicas às tarifas bancárias, há uma avenida a ser explorada para lustrar a imagem do Congresso e do presidente eleito junto ao eleitorado. Tem cara e focinho de vingança pelas delações em que os empresários enredaram os partidos. Mas pode não passar da repactuação do achaque.

Se der Bolsonaro, a maioria parlamentar tende a lhe conceder todas as atrocidades que deseja na legislação de costumes e de segurança pública em troca do controle da regulação das privatizações. Face à disposição do economista Paulo Guedes ao diálogo ou à vocação do general Mourão à conciliação, Jair Bolsonaro corre o risco de passar por democrata. Se nada disso der certo, o vice já deixou clara a saída, que atende pelo eufemismo de autogolpe.

Se der Haddad, o discurso predominante é pela reprise do primeiro governo Lula. O candidato já começou a desautorizar economistas à esquerda do partido e acenar com medidas simpáticas aos reformistas como a idade mínima para a aposentadoria. O programa do PT, desnecessariamente radical em alguns pontos, como na regulação das comunicações, cuidou de preservar lacunas em pontos-chave, como a Previdência.

Na negociação com um governo petista, há mais chances de reproduzir o domínio parlamentarista dos últimos anos, extensivo ao Senado. Com grandes chances de permanecer na Casa, Renan Calheiros jantou com José Dirceu esta semana. Já ameaça a reeleição de Eunício Oliveira à presidência da mesa.

Para dar curso a uma pauta com pinceladas liberais de um governo petista, as bancadas de ex-despachantes trataria de oferecer novas atrações à plateia. É um movimento para reduzir as margens dos grandes conglomerados. Tem um nome bonito para a coisa. Trata-se de aumentar a competitividade da economia. No lugar dos campeões, chegará a vez dos vilões nacionais.

Esta é a pauta a ser posta em curso a partir do dia 7 à espera do eleito do fim de outubro. Não se pode dizer que terá passado pela chancela do eleitor na campanha calculada para ser a mais curta da história. É filha dileta do divórcio entre democratas que já dura 30 anos. E ainda tem quem se espante com o avanço de Bolsonaro.

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