"O governo não tem seis meses e a palavra impeachment já surgiu. Quem é que vai ter segurança de investimento?"
Por César Felício e Carolina Freitas | Valor Econômico
SÃO PAULO - Parlamentares do centrão pretendem tomar o controle da negociação sobre a reforma da Previdência, alijando o governo. Em entrevista ao Valor na sexta-feira, o presidente da Comissão Especial que analisa o tema, deputado Marcelo Ramos (PR-AM) traçou algumas linhas gerais que podem entrar no substitutivo do relator, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP). Além das alterações nas propostas sobre BPC, aposentadoria rural, aposentadoria especial de professores e capitalização, já bastante comentadas, há uma articulação para fundir as mudanças da aposentadoria dos militares à Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
A ideia é manter como projeto de lei apenas a recomposição salarial das Forças Armadas. O restante da proposta enviada pelo governo ao Congresso passaria a tramitar junto com a reforma.
"O governo faz coisas pro-forma como se todo mundo fosse tolo. Mandou o projeto dos militares com impacto fiscal de R$ 10 bilhões e ainda deixou paralisado", afirma ao Valor o deputado.
Nascido em Manaus há 45 anos, Ramos começou a vida política como líder estudantil e passou 16 anos filiado ao PCdoB. O deputado, que é advogado e professor de Direito, disse que a opinião do governo "é absolutamente irrelevante para tudo".
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida pelo deputado ao Valor na sexta-feira:
Valor: Diante do cenário de crise no governo, como garantir que a reforma da Previdência avance?
Marcelo Ramos: A Câmara vai tomar para si a reforma. Será como em um semiparlamentarismo. O Executivo sempre controlou a pauta do Legislativo, mas a situação é outra.
Valor: Qual o sentimento em relação ao governo Bolsonaro?
Ramos: Há um sentimento de desilusão. O presidente tem se esforçado para que as pessoas desistam dele. Na economia, há um plano de voo, pelo menos. Se você pegar as outras áreas, são absolutamente levadas pelo vento.
Valor: O Congresso quer tocar a reforma da Previdência como agenda própria. Tentou-se na época de Collor fazer um pacto pelo Brasil, tentou-se blindar reforma na época do Temer. Não funcionou. Por que dessa vez vai ser diferente?
Ramos: Por uma estratégia de afirmação do Parlamento, de dizer "[a reforma] não é do presidente, o Parlamento vai fazer". Veja o que o Maia fez em relação à reforma tributária. Se andar, nós vamos ter pela primeira vez na história uma reforma estruturante que não é fruto da convergência de Legislativo e Executivo. O governo hoje não tem força nenhuma de lutar lá dentro. Dentro da Câmara, ninguém ouve o que o governo diz. A opinião do governo é absolutamente irrelevante para tudo.
Valor: O que vai acontecer com as medidas provisórias pendentes?
Ramos: Eu acho que a MP 868, do saneamento, vai acabar passando, apesar da atitude contrária dos governadores. A MP 870 eu acho que vai passar com as alterações feitas na comissão especial, ou seja, no Coaf e na Funai.
Valor: Ou seja, mais uma derrota do Major Vitor Hugo?
Ramos: Vitor Hugo é bem-intencionado, tecnicamente o melhor lá deles, mas não tem autoridade. Nem o governo o empodera, nem o Parlamento. A bancada do PSL é inadministrável, não tem como ter líder da bancada do PSL. Quem é a bancada do governo? 52 do PSL. Ou seja, líder do governo é líder de nada.
Valor: O centrão precisa da oposição para ter maioria, não?
Ramos: Mas para ter maioria de que? Sem um partido do centrão o governo já não faz 308 votos. Eu acho que o centro precisa ter um projeto para o país. Porque, se se conformar na atuação parlamentar, não vai perder a pecha de fisiológico nunca.
Valor: Bolsonaro não pode achar que, depois que a reforma da Previdência passar, o centrão se junta com a oposição para derrubá-lo?
Ramos: Como o Parlamento pode pensar que, depois da reforma da Previdência, ele se junta com Moro para criminalizar a política e seguir por um caminho autoritário. Então, o receio há dos dois lados. Ainda bem que há receio dos dois lados, é isso que gera o equilíbrio.
Valor: Bolsonaro associa o centrão ao desejo por cargos.
Ramos: Por conta dos desvios de conduta, estamos criminalizando uma prática que é republicana. O que não é republicano é usar cargo para desviar recurso, para comprar deputado. Agora o governo está oferecendo cargo de segundo, terceiro, quarto escalão. Isso não é republicano. A compra de um deputado no varejo em troca de um cargo para ele resolver o problema de um amigo dele não é republicano. Eles ofereceram lá vários cargos e as bancadas negaram. À bancada do Ceará mesmo, eles levaram uma lista de cargos e a bancada negou.
Valor: O governo teria que dar então uma área, uma pasta?
Ramos: É normal. Com padrões, com mecanismos de compliance, de fiscalização, de conduta. Se quer participar da pauta do Parlamento, os partidos que apoiam tem que participar do governo.
Valor: Como chegar a um plano comum do centrão com tantos interesses diferentes?
Ramos: Na verdade inexiste um pensamento econômico desses partidos, mas tem que existir. O partido que não tem perspectiva de poder existe por fisiologismo. O país foi se polarizando nos extremos porque a direita liberal tinha uma pauta e arrumou um líder. Bolsonaro virou liberal na eleição. A trajetória política dele é comprometida com o atraso, com as corporações, com o descontrole do gasto público. O entendimento do Bolsonaro de país é muito precário. Ele não tem noção de nada.
Valor: Como ele ganhou as eleições?
Ramos: Nos momentos de desesperança, o povo não consegue entender formulações complicadas. Só entende o simples. O povo não entende que no momento de desesperança tem que ter programa social. Tem é que matar bandido. Ponto. E deram a ele a pauta de costumes, em um país conservador. E é isso que constrange o governo agora. Ele teve que deixar de lado a pauta de costumes, entrar na pauta econômica, para qual não tem clareza, não tem consistência da defesa e não tem respostas simples.
Valor: Ou seja, neste momento a pauta é do Congresso. O futuro do país é o Congresso
Ramos: Estamos em um semiparlamentarismo.
Valor: Se o Congresso tem clareza da urgência da reforma da Previdência, por que o número de indecisos na Câmara não cai? Já não é hora de tirar o BPC, a aposentadoria rural?
Ramos: Não tem como tirar isto antes do fim do prazo das emendas e das audiências públicas. Cada coisa que eu tirar agora, eu vou ter que tirar mais lá na frente. Que é o grande erro do Bolsonaro: quando ele fala em tirar uma coisa, ele dá sinal para o Congresso tirar outra. Porque ele não pode ser o agente das bondades, que tira todos os mais pobres da reforma e o Congresso o agente das maldades. A proposta é dele. Se não for para o presidente fazer a defesa integral da reforma, é melhor que não fale.
Valor: O monopólio da bondade tem que ficar com o Congresso?
Ramos: Porque o ônus vai ser dos parlamentares. Olhem os debates na reforma da Previdência. Ninguém tem coragem de defender as corporações. Eu fiz uma audiência pública no meu Estado segunda-feira. CUT, UGT, CGT... me entregaram uma pauta. Falava lá para tirar aposentadorias rurais, BPC, desconstitucionalização, capitalização, professores, e aí eu falei: estamos juntos.
Valor: O senhor defende tirar a capitalização?
Ramos: Ninguém vai dar cheque em branco para o Paulo Guedes. Se ele não disser quem vai pagar o estoque que vai ficar do sistema anterior, nós não vamos entrar em uma aventura. Eles não dizem qual é este custo. Eu gosto muito da ideia de um colchão de repartição, com teto baixo, redução de contribuição patronal e previdência capitalizada complementar. Um pouco o que o Mauro Benevides Filho (PDT-CE) propõe.
Valor: Esta proposta, que fez parte do programa de governo de Ciro Gomes, implicava em uma redução do teto de aposentadoria do INSS
Ramos: Vou ser prático. O que o cara vai fazer, se ganha acima do teto, não é problema meu. 82% dos beneficiários do regime geral já recebem até dois salários mínimos. Estaremos mexendo com 18%. Eu tenho contraposto o ministro Paulo Guedes no discurso sobre a reforma. Eu acho que não devemos criar um discurso muito otimista, como foi criado em torno da reforma trabalhista, porque daí o ônus vai ser maior. Paulo Guedes diz, aprovou a reforma num dia, no outro dia o dinheiro entra. Não é verdade. Esse é um ano perdido.
Valor: E há a crise política, que preocupa potenciais investidores.
Ramos: O governo não tem seis meses e a palavra impeachment já surgiu. Quem vai ter segurança de investimento em um país com uma instabilidade política como essa? Eu não embarco no discurso do Guedes. Porque se eu embarcar, dois meses depois da aprovação da reforma, vão me cobrar que o emprego tenha melhorado. Não vai melhorar. Outro discurso que não embarco é que reforma é só para combater privilégio. Não é. Reforma é para fazer ajuste fiscal.
Valor: João Doria estava muito bravo com o senhor.
Ramos: Se o governador Doria quer tanto a reforma da Previdência, por que ele não manda a dele para a Assembleia Legislativa de São Paulo? Foi a mesma resposta que eu dei para o governador [de Goiás, Ronaldo] Caiado. Ele disse que a CCJ estava desidratando a proposta. Eu falei: não tem problema, ele manda a dele, para a assembleia dele, hidratada e está resolvido.
Valor: Estados e municípios dentro da reforma cai então?
Ramos: Eu não sei se cai. Na proposta do Temer, a questão dos Estados tinha uma regra de desembarque. Valia para todo mundo e tinha seis meses para desembarcar. Você pode ter uma regra de embarque ou algo que eu estou amadurecendo: uma regra como a do marco regulatório de mobilidade urbana. O governo federal aprova as regras gerais, e os Estados e municípios têm um prazo pra fazer as suas sob pena de ficar impedidos de receber repasse voluntário da União. Não fazer nada é muito perigoso porque quem quebra recebe socorro e quem não quebra não recebe nada.
Valor: E como o senhor vê a tramitação da reforma dos militares?
Ramos: Precisamos começar a refletir em trazer a reforma dos militares para dentro da PEC. Minha proposta é deixar no projeto de lei a recomposição salarial e trazer para a PEC a parte de previdência. Eu não sou contra a recomposição salarial. Um general quatro estrelas receber menos do que um juiz de primeira instância é uma brincadeira.
Valor: Isso significa priorizar o ajuste dos militares e deixar a recomposição salarial dormitando?
Ramos: Eu acho que vai fazer a recomposição salarial andar mais rápido, porque, na verdade, estão parados os dois. A hora em que você trouxer a reforma dos militares para dentro da PEC, eu tenho certeza que vai andar a recomposição salarial.
Valor: Se não colocar os militares dentro da PEC, pode dificultar a votação da reforma?
Ramos: Não, acho que não. O problema é que o governo faz coisas pro-forma como se todo mundo fosse tolo. O governo mandou a dos militares com impacto fiscal que na prática é de R$ 10 bilhões e ainda deixou paralisada. Mas vamos acabar com essa polêmica: a gente traz a parte de previdência para dentro da PEC. Ainda vamos melhorar o impacto fiscal da PEC.
Valor: A recomposição de salário para os militares teria dificuldade de passar no Congresso?
Ramos: Não, até porque é lei ordinária. Eu voto a favor. Voto inclusive pela urgência.
Valor: Não há o risco de se estender para policiais militares, bombeiros, policiais civis, agentes penitenciários, guardas municipais?
Ramos: Onde passa um boi passa uma boiada.
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