Quando
prestarem contas sobre as centenas de milhares de vidas que a pandemia da
Covid-19 ceifou no país, o governo Jair Bolsonaro e o Congresso Nacional também
terão de explicar por que aprovaram e aplicaram um programa tão errático para
enfrentar a fome e a pobreza. Fundamental para atenuar a vulnerabilidade
decorrente da combinação nefasta de crises sanitária, econômica e social, o
auxílio emergencial está longe de ser uma política social de excelência, por
ineficiente, mal elaborada, imprevisível. Após o hiato injustificado de um
trimestre, retornou neste abril em valor e formato claramente insuficientes
para dar alívio às famílias e, como em 2020, ajudar no combate à pandemia e na
recuperação da atividade.
Qualquer indivíduo minimamente envolvido no debate sobre políticas públicas sabe que não é eficiente um programa em que um quinto dos recursos teve destino irregular. Foi essa a conclusão do ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, no “Balanço da fiscalização do auxílio emergencial”, publicado em fevereiro passado. “O Auxílio Emergencial foi tempestivo e alcançou trabalhadores sem renda formal, porém os altos índices de pagamentos indevidos resultaram em desperdício de recursos públicos”, resume o documento de 34 páginas.
O
acompanhamento identificou 7,3 milhões de beneficiários fora dos requisitos
legais, incluindo servidores militares e civis, além de 6,4 milhões de mães sem
cônjuges que receberam cota excedente. O par de erros gerou, num orçamento de
R$ 293,1 bilhões, R$ 54 bilhões de pagamentos indevidos (18% do total). Era
dinheiro suficiente para oferecer auxílio de R$ 300 a 60 milhões de brasileiros
por três meses, segundo o TCU. Este ano, o governo reservou R$ 44 bilhões para
a nova rodada.
O
auxílio emergencial foi política social errática, em montanha-russa. Saiu do
papel, um ano atrás, por pressão da sociedade civil organizada e do Congresso
Nacional, sobretudo das bancadas de oposição. Na origem, Paulo Guedes e equipe
econômica ofereceram benefício de R$ 200. No Parlamento, o valor passou a R$
500; chegou a R$ 600 por bem-vinda sugestão do presidente da República. Desde o
início, estava claro que a crise sanitária se estenderia por pelo menos um ano.
A Rede Brasileira da Renda Básica tentou avançar no debate de uma política
permanente, em linha com variáveis estruturais que minam as condições de vida
no Brasil, a começar pela precarização do mercado de trabalho.
O
auxilio emergencial foi criado para durar cinco meses, com benefício médio de
R$ 600, com inscrição por aplicativo e pagamento via contas digitais, uma
complicação para os mais pobres. Ainda assim, aquele foi o melhor momento do
programa, seja do ponto de vista da cobertura (68 milhões de beneficiários) e
redução da pobreza, quanto da contribuição ao isolamento social e às atividades
do comércio e da indústria. Foi essa a chave para o PIB brasileiro ter recuado
4,1% em 2020, não 9,1% como chegou a ser previsto pelo Fundo Monetário
Internacional. O economista Marcelo Neri, da FGV Social, estima que, entre
fevereiro e agosto de 2020, a proporção de pobres (renda per capita inferior a
R$ 246) caiu à metade: de 10,97% para 4,52%.
Dali
em diante, foi ladeira abaixo. O benefício foi reduzido para R$ 300 por três
meses e, na virada do ano, desapareceu. A economia desacelerou, e a
vulnerabilidade social recrudesceu. Nas contas de Neri, o total de pobres saiu
de 9,5 milhões em agosto de 2020 para 27,2 milhões em fevereiro deste ano. O
inquérito da Rede Penssan revelou que mais da metade dos lares (55,2%)
conviviam com algum nível de insegurança alimentar nos três últimos meses de
2020, contra 36,7% dois anos antes. Havia 116,8 milhões de brasileiros sem
acesso pleno e permanente a alimentos. Dentre eles, 19,1 milhões (9% da
população) passavam fome — não à toa, organizações da sociedade civil
reativaram campanhas de doação de cestas básicas, água e kits de higiene.
“A
partir da virada do ano, a gestão da crise entra no estágio criminoso, porque o
auxílio emergencial foi suspenso, e a pandemia se agravou. Governo e Congresso
não só demoraram, como aprovaram um valor irrisório, que não dará conta da
crise aguda. Nossa impressão é que a situação ficará tão difícil, com tensão
social crescente, que haverá revisão do benefício”, diz o economista Francisco
Menezes, analista de Políticas e Programas da ONG ActionAid.
A
nova rodada do auxílio emergencial está prevista para durar quatro meses e
pagará R$ 150 (pessoas sozinhas), R$ 250 (demais famílias) ou R$ 375 (mães sem
cônjuges) aos 45,6 milhões de beneficiários de dezembro, como se a miséria
estivesse estacionada em 2020. São valores que não compram uma cesta básica. É
ação inadequada para o país que organizou o Cadastro Único (imenso banco de
dados dos lares mais pobres) e pôs de pé o Bolsa Família (programa de
transferência com benefício variável, de acordo com a quantidade crianças,
idosos, gestantes). “Se tivesse interesse verdadeiro na população, o governo
implantaria um programa mais eficiente, justo e duradouro. Mas a política
pública atual não é norteada pelo bem-estar, mas por uma ajuda assemelhada a
caridade, esmola”, resume o geógrafo Jailson Souza e Silva, fundador do
Observatório de Favelas. Precisamos falar sobre política social, com “P”
maiúsculo.
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