Já
estava com este texto em produção quando tomei conhecimento da duríssima, mas
irretocável, mensagem que o ex-decano do STF Celso de Mello enviou a um grupo
de amigos no momento em que seu substituto na cadeira, Nunes Marques, presta
homenagem ao negacionismo votando pela liberação de cultos e missas quando
contamos mais de 345 mil mortos.
Mello
cumpria uma quarentena silente desde novembro. Mas, quando falou, deu nome às
coisas. “Hoje, em nosso país, o presidente da República (que julga ser um
monarca absolutista ou um contraditório ‘monarca presidencial’) tornou-se, com
justa razão, o Sumo Sacerdote que desconhece tanto o valor e a primazia da vida
quanto o seu dever ético de celebrá-la incondicionalmente!!! A sua arbitrária
recusa em decretar o ‘lockdown’ nacional (como ocorreu em países de inegável
avanço civilizatório) equivale a um repulsivo e horrendo ‘grito necrófilo’ ”,
escreveu.
O
“grito necrófilo” de Jair Bolsonaro, explicou no texto, é uma referência ao
“grito que teria sido proferido pelo conflito entre Miguel de Unamuno, reitor
da Universidade de Salamanca no início da Guerra Civil espanhola, em 1936, e o
general Millán Astray, que, seguidor falangista fiel ao autocrata Francisco
Franco, “Caudilho de Espanha”, lançou o grito terrível: “¡Viva la muerte; abajo la inteligencia’!”.
Na noite anterior, em São Paulo, dezenas de empresários de vários setores se reuniram com Bolsonaro, ministros e até o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para um convescote com direito a comes, bebes, perdigotos, falta de máscaras, xingamentos ao governador do estado, felicitações e… ovação!
O
que aplaudem os endinheirados do Brasil, o pior país no trato da pandemia,
aquele que virou razão de comiseração global e repulsa externa? A quem
ovacionam? Ao governante que chama de “vagabundo” o governador do estado que,
até aqui, forneceu 80% das vacinas usadas para imunizar apenas 10% da população
brasileira?
O
que celebram? A iminência da falta de oxigênio nos hospitais? Aliás, o que
fazia, numa aglomeração realizada em desacordo com as restrições impostas pela
fase emergencial do Plano São Paulo, o médico Claudio Lottenberg, presidente do
conselho do Hospital Israelita Albert Einstein, hospital que vive o mesmo
flagelo de superlotação e esgotamento das equipes de toda a rede hospitalar do
país?
O
aplauso a Bolsonaro parte dos mesmos que salivam por um projeto torpe, que
permite a empresas com conexões com laboratórios furar a fila da vacinação e
fazer letra morta do Plano Nacional de Imunização, numa percepção tão mesquinha
quanto burra de que, assim, poderão retomar a produção de suas empresas e a
“vida normal”, quando qualquer um que se informe minimamente sobre a pandemia
sabe que, para isso, é necessário vacinar mais de 70% da população e fazer o
vírus deixar de circular da forma descontrolada como está circulando.
Os
nababos reunidos sem máscara em torno de copos e pratos ouviram o presidente
reiterar sua cantilena contra distanciamento social e saíram do encontro se
dizendo “esperançosos”, “tranquilos”.
Como
podem estar tranquilos diante do aumento gritante da miséria e da fome? Da
iminência de que a produção de vacinas pelo Butantan seja paralisada, sem que
as outras prometidas pelo homenageado estejam chegando? Da falta de insumos
básicos nos hospitais? De oxigênio?
Enquanto parte da elite empresarial brasileira aceitar servir de figurante para campanha eleitoral antecipada no momento de maior gravidade da História do Brasil desde a redemocratização, continuaremos ouvindo o grito necrófilo que o ministro Celso de Mello tão brilhante e tristemente nomeou. E é um urro grotesco e desrespeitoso com o luto de milhões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário