O Estado de S. Paulo
O que estamos vendo, desde muito antes da
pandemia, é um abismo profundo
“...un
nobre potrillo que justo
en la raya afloja al llegar”
Carlos Gardel
Em 1958, quando publicou seu clássico Os
Donos do Poder, Raymundo Faoro apresentou-nos uma tese deveras preocupante: a
de que, desde os tempos coloniais, um “patronato político” se apropriara do
Estado, apagando praticamente a distinção entre o público e o privado.
Curioso é que tal tese, por mais
preocupante que fosse, permitia duas interpretações diametralmente opostas.
Uma, pessimista, sugeria que tal sistema de domínio, o chamado patrimonialismo,
fincara raízes profundas, a ponto de ninguém descortinar um caminho para a sua
erradicação. Essa vertente sugeria que, do ponto de vista político, nossa
melhor chance seria chegar a uma fachada democrática, atrás da qual o patronato
prosseguiria com seus negócios; economicamente, estaríamos condenados ao mesmo
grau de mediocridade, uma vez que tal sistema jamais permitiria uma transição
efetiva para o capitalismo nem a opção para um totalitarismo dinâmico, como o
da China atual. Na vertente otimista, asseverava-se que o patrimonialismo não
resistiria ao crescimento econômico, à urbanização, à crescente intensidade da
competição política – à modernização, enfim.
Retomando a questão original, a que conclusão chegaríamos hoje? Atrevo-me a afirmar que o cenário pessimista não só prevaleceu, como se tornou muito pior do que o concebido por Faoro. Não levo essa afirmação ao extremo de contestar que avançamos bastante na construção da democracia, tese que defendo em meu livro Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira, cuja segunda edição está no prelo. Parece-me, porém, certo que não logramos o mesmo índice de progresso em termos econômicos, sociais e educacionais. E mais certo ainda que a estagnação econômica e a degradação institucional das últimas duas décadas já ameaçam seriamente as próprias conquistas democráticas. Para substanciar essa avaliação, nossa renda anual per capita e nossos índices educacionais são mais que suficientes.
O gosto pelos eufemismos leva-nos a
empregar termos como estagnação, cenário preocupante e análogos, mas o buraco é
bem mais embaixo. O que estamos vendo, desde muito antes da pandemia, é um
abismo profundo, ou um colossal retrocesso, como queiram. Nesse sentido,
limito-me a sublinhar um fato. Com dez minutos de reflexão, qualquer cidadão é
capaz de discorrer com propriedade sobre as consequências de uma radicalização
entre Lula e Bolsonaro – ou da vitória de qualquer um dos dois – na eleição
presidencial de 2022.
Para bem entender a hipótese do retrocesso,
penso que dois importantes fatores precisam ser levados em conta. Primeiro,
nossa cultura política, que sempre teve dezenas de defeitos, submergiu em mais
alguns que nós, por indiferença, medo ou hipocrisia, não nos dispomos a
discutir. Éramos atrasados, mas não éramos boçais. Como sociedade, nunca
chegamos ao convívio pacífico e fraternal que os acólitos da ditadura Vargas tentavam
nos vender como mercadoria valiosa, mas tampouco chegávamos sequer perto do
radicalismo grosseiro que se configurou plenamente a partir da eleição de 2018.
E aqui preciso suscitar o segundo fator novo a que acima me referi. Essa
aceitação preguiçosa da realidade de um país em decomposição explica-se
sobretudo pela inexistência, entre nós, de uma elite digna do nome, quero
dizer, no sentido sério do termo.
A reversão do cenário pessimista que tentei
delinear nos parágrafos precedentes exige a superação do patrimonialismo e,
portanto, o robustecimento do setor privado da economia, e respeito pelas
instituições democráticas e pela esfera pública, valores que não estão à vista.
Essa revolução – sim, porque essa é a revolução de que necessitamos – requer o
fortalecimento, dentro da elite, de uma parcela efetivamente voltada para o bem
comum, expressão antiga, mas ainda útil. Um pedaço ao menos de uma elite
orientada por objetivos públicos, e não “amigos do rei”, voltados para a
obtenção de vantagens pessoais e para o favorecimento de grupos privados.
Justiça seja feita, um embrião de uma elite
desse tipo existiu em vários momentos de nossa História, e existe ainda hoje,
mas ela permanece exígua em relação ao conjunto. Permanece e permanecerá exígua
enquanto a parte maior se deixar pautar pela indiferença, pelo medo e pela
hipocrisia.
Esse é o quadro com que nos deparamos
quando examinamos o funcionamento do nosso sistema político, expressão que
compreende os três Poderes, as empresas estatais e toda a miríade de
organizações que gravita em torno deles. Refazê-lo de alto a baixo tem de ser o
alfa e o ômega de uma verdadeira reforma política do País.
Desde os tempos de Faoro, quando esperávamos a debilitação do tosco patrimonialismo de origem portuguesa, o que vimos foi a transformação dele numa grande máquina corporativista e corrupta, perpetuando a subjugação do País por interesses exclusivistas. A manter-se tal engrenagem, o que gostaríamos de chamar de desenvolvimento sustentável será apenas a mesma interminável série de engasgos e soluços que temos testemunhado desde pelo menos a 2.ª Guerra Mundial.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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