Folha de S. Paulo
Partido único é reflexo da captura do
Estado por uma elite política que cala os demais
Nos cem anos
do Partido Comunista Chinês (PCC), celebrados em 1º de julho, Lula
ofereceu um panegírico completo. “Por que a China pode fazer o que diz? Porque
ela tem um partido politico forte.” O erro básico do líder da esquerda
brasileira é conceitual: desde que chegou ao poder, o PCC deixou de ser um
partido político.
Partido é uma parte, uma parcela, uma
facção. Partidos só existem no plural, em sistemas de concorrência política,
que reconhecem a legitimidade da divergência de opiniões no conjunto da
sociedade.
O partido único, uma contradição em termos,
não é um partido mas o reflexo da captura do Estado por uma elite política que
cala as vozes de todos os demais —e, portanto, almeja eliminar a própria
política. O PCC é,
desde 1949, um Partido-Estado.
A utopia da igualdade social funcionou, até
1989, como fonte de legitimação discursiva dos totalitarismos comunistas. Três
décadas atrás, o PCC sobreviveu à queda da URSS substituindo a ideologia
comunista pelo nacionalismo chinês e o sistema econômico fechado por um
capitalismo de Estado integrado à globalização.
Na China, a fome, crônica ou aguda, deu lugar a um longo ciclo de crescimento da economia e da renda. Hoje, a esquerda ainda enfeitiçada pelo regime de Partido-Estado só pode justificá-lo sob o argumento da eficiência.
“A China é
capaz de lutar contra o coronavírus tão rapidamente porque o governo tem
controle e poder de comando”, disse Lula. Hitler ergueu uma
poderosa máquina de guerra e uma colossal fábrica de extermínio. Stálin montou
a extensa rede de campos do gulag e seus sucessores transformaram a URSS em
superpotência nuclear.
O totalitarismo é eficiente para finalidades que exigem comando inconteste sobre populações e recursos. A China congelou a circulação do vírus por meio de lockdowns absolutos. Mas, quando se trata de inovação, o cenário é outro: as vacinas mais eficazes nasceram nas sociedades abertas ocidentais.
Eficiência, o argumento
de Lula, é atributo que exige qualificação. Os sistemas totalitários
revelam-se singularmente ineficientes quando se trata da transição de poder. As
democracias operam sob regras claras e consensuais de sucessão no governo. Nos
regimes de Partido-Estado, a sucessão desenvolve-se sob a forma de guerras
palacianas mais ou menos subterrâneas. A política, que jamais é efetivamente
abolida, manifesta-se como conflito faccional dentro do partido único.
Na China maoísta, a Revolução Cultural,
deflagrada para cimentar o poder pessoal do Timoneiro, deixou um legado de
milhões de cadáveres. O PCC, em seu centésimo aniversário, segue enredado na
armadilha da transição de poder.
Deng Xiaoping,
o segundo Timoneiro, inventou o mecanismo da “direção coletiva” para afastar o
espectro das guerras sucessórias. A geringonça estabilizou o regime durante 20
anos, os ciclos de governo de Jiang Zemin e Hu Jintao, mas emperrou com a ascensão de
Xi Jinping.
As tensões internas provocadas pela
expansão da classe média e dos intercâmbios com o exterior e pelo advento das
redes sociais conduziram a uma nova concentração pessoal de poder. Xi Jinping
tornou-se o terceiro Timoneiro: líder vitalício, oráculo da Verdade
Estatal. A China que Lula não vê restaurou o sistema de governo maoísta, cuja
estabilidade depende do recurso à
violência crescente.
Os comunistas justificavam o sistema de
Partido-Estado por meio de uma invocação moral: a utopia igualitária. Lula, que
só é comunista nos discursos delinquentes do bolsonarismo, escolheu
justificá-lo pela razão pragmática: a eficiência de comando.
Na hipótese benevolente, o candidato presidencial exprime-se sinceramente, como prisioneiro da própria ignorância. A hipótese alternativa é que, de fato, ele admira —e inveja— um sistema no qual a opinião divergente constitui crime punível com o degredo ou a morte.
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