O Globo
Vamos colocar a história na devida ordem: o
presidente Bolsonaro confessa implicitamente que prevaricou.
Eis a sequência recente: o líder do governo
no Senado, Fernando Bezerra, leu nota oficial na CPI da Covid afirmando que
Bolsonaro pediu ao então ministro Pazuello que investigasse a denúncia de
corrupção na compra da vacina Covaxin. Ora, se pediu para investigar, está
claro que o presidente recebeu a denúncia do deputado Luis Miranda.
Seguindo: essa versão, a terceira, furada,
só foi apresentada em junho, três meses depois do encontro com o deputado, em
20 de março. E só apareceu porque o deputado revelou o fato, dizendo-se cansado
de esperar por providências.
Mais: não tem nenhum documento mostrando
que houve de fato a investigação, nem que a Polícia Federal foi acionada no
momento do recebimento da denúncia.
Pior, o presidente não desmentiu que, ao receber a informação do deputado, comentou: “isso é ‘rolo’ do Ricardo Barros” (líder do governo na Câmara). Essa frase revela que Bolsonaro sabe que seu líder é “roleiro” e, ainda assim, o mantém no posto.
Detalhe nada desprezível: a empresa que
intermediou a compra da Covaxin é notoriamente ligada ao deputado Ricardo
Barros, que mantém influência no Ministério da Saúde, comandado por ele no
governo Temer.
E os documentos: o contrato de compra da
Covaxin, o empenho da verba para pagamento e as três notas fiscais para
antecipar o pagamento. Tudo isso com pressões diversas sobre a estrutura do
ministério para que o negócio saísse logo.
Que falta mais? Ah! Sim, o telefonema de
Bolsonaro para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, pedindo agilidade
na liberação da vacina.
Tudo considerado, trata-se de uma confissão
implícita do presidente Bolsonaro e de um monte de gente no entorno. A começar
daqueles que disseram ter investigado, o general Pazuello e o coronel Elcio
Franco, sem ter um mísero pedaço de papel para mostrar.
A isso tudo acrescenta-se a tremenda
incapacidade do governo, provada por essa ridícula negociação com um cabo da PM
de Alfenas (MG) para a compra de 400 milhões de doses da AstraZeneca.
Vamos reparar, pessoal: isso daria para
vacinar toda a população brasileira! E sai do nada, de uma empresinha
americana, representada por um desconhecido PM? O cara chegou a ser recebido
pelo então secretário executivo da Saúde, o coronel Elcio.
Seria engraçado — e é engraçado — não fosse
o fato grave de revelar um submundo de negociatas de medicamentos e
equipamentos. Um mercado paralelo, informal — onde as pessoas se conhecem só
pelos primeiros nomes, não sabem de onde vêm, currículos, nada e, ainda assim,
têm acesso a altas autoridades do governo.
Negacionista, o presidente não queria
comprar vacinas. Atrasou conversas com executivos formais da Pfizer, recusou a
CoronaVac, desconfiou da AstraZeneca. E se tratava de medicamentos testados e
aprovados em diversos países, negociados por executivos de farmacêuticas e
institutos responsáveis e oficiais.
O então ministro Pazuello seguiu essas
orientações negacionistas. E quando foi para comprar vacinas, aparecem esses
picaretas e “roleiros”?
Assim se foi do negacionismo para as
negociatas. O preço? Centenas de milhares de vidas que poderiam ter sido salvas
se as pessoas tivessem sido vacinadas a tempo.
Não é só má administração, picaretagem,
corrupção. É um conjunto de práticas assassinas.
A CPI da Covid avançou por terrenos
inesperados. Sempre acontece. Sim, tem muitos picaretas também fazendo
denúncias — mas o que queriam? Que as denúncias de roubalheira saíssem de quem
está por fora?
Todos os grandes escândalos de corrupção têm isto em comum: começam com alguém que se sentiu prejudicado na negociata. Assim como a situação de Bolsonaro se complica à medida que seus aliados de ocasião se sentem prejudicados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário