sábado, 3 de julho de 2021

Carlos Alberto Sardenberg - Do negacionismo às negociatas

O Globo

Vamos colocar a história na devida ordem: o presidente Bolsonaro confessa implicitamente que prevaricou.

Eis a sequência recente: o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, leu nota oficial na CPI da Covid afirmando que Bolsonaro pediu ao então ministro Pazuello que investigasse a denúncia de corrupção na compra da vacina Covaxin. Ora, se pediu para investigar, está claro que o presidente recebeu a denúncia do deputado Luis Miranda.

Seguindo: essa versão, a terceira, furada, só foi apresentada em junho, três meses depois do encontro com o deputado, em 20 de março. E só apareceu porque o deputado revelou o fato, dizendo-se cansado de esperar por providências.

Mais: não tem nenhum documento mostrando que houve de fato a investigação, nem que a Polícia Federal foi acionada no momento do recebimento da denúncia.

Pior, o presidente não desmentiu que, ao receber a informação do deputado, comentou: “isso é ‘rolo’ do Ricardo Barros” (líder do governo na Câmara). Essa frase revela que Bolsonaro sabe que seu líder é “roleiro” e, ainda assim, o mantém no posto.

Detalhe nada desprezível: a empresa que intermediou a compra da Covaxin é notoriamente ligada ao deputado Ricardo Barros, que mantém influência no Ministério da Saúde, comandado por ele no governo Temer.

E os documentos: o contrato de compra da Covaxin, o empenho da verba para pagamento e as três notas fiscais para antecipar o pagamento. Tudo isso com pressões diversas sobre a estrutura do ministério para que o negócio saísse logo.

Que falta mais? Ah! Sim, o telefonema de Bolsonaro para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, pedindo agilidade na liberação da vacina.

Tudo considerado, trata-se de uma confissão implícita do presidente Bolsonaro e de um monte de gente no entorno. A começar daqueles que disseram ter investigado, o general Pazuello e o coronel Elcio Franco, sem ter um mísero pedaço de papel para mostrar.

A isso tudo acrescenta-se a tremenda incapacidade do governo, provada por essa ridícula negociação com um cabo da PM de Alfenas (MG) para a compra de 400 milhões de doses da AstraZeneca.

Vamos reparar, pessoal: isso daria para vacinar toda a população brasileira! E sai do nada, de uma empresinha americana, representada por um desconhecido PM? O cara chegou a ser recebido pelo então secretário executivo da Saúde, o coronel Elcio.

Seria engraçado — e é engraçado — não fosse o fato grave de revelar um submundo de negociatas de medicamentos e equipamentos. Um mercado paralelo, informal — onde as pessoas se conhecem só pelos primeiros nomes, não sabem de onde vêm, currículos, nada e, ainda assim, têm acesso a altas autoridades do governo.

Negacionista, o presidente não queria comprar vacinas. Atrasou conversas com executivos formais da Pfizer, recusou a CoronaVac, desconfiou da AstraZeneca. E se tratava de medicamentos testados e aprovados em diversos países, negociados por executivos de farmacêuticas e institutos responsáveis e oficiais.

O então ministro Pazuello seguiu essas orientações negacionistas. E quando foi para comprar vacinas, aparecem esses picaretas e “roleiros”?

Assim se foi do negacionismo para as negociatas. O preço? Centenas de milhares de vidas que poderiam ter sido salvas se as pessoas tivessem sido vacinadas a tempo.

Não é só má administração, picaretagem, corrupção. É um conjunto de práticas assassinas.

A CPI da Covid avançou por terrenos inesperados. Sempre acontece. Sim, tem muitos picaretas também fazendo denúncias — mas o que queriam? Que as denúncias de roubalheira saíssem de quem está por fora?

Todos os grandes escândalos de corrupção têm isto em comum: começam com alguém que se sentiu prejudicado na negociata. Assim como a situação de Bolsonaro se complica à medida que seus aliados de ocasião se sentem prejudicados.

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