Folha de S. Paulo
O desprezo de Bolsonaro pelo direito dos
outros terá efeitos devastadores
O legado do desgoverno de Bolsonaro não se
limitará às milhares de vidas perdidas pela falta de uma política decente
de combate à
pandemia, às florestas criminosamente devastadas ou à violência
contra povos indígenas sob o auspício das autoridades constituídas; nem mesmo
se restringirá à degradação de serviços públicos essenciais, obstruindo nosso
processo de desenvolvimento econômico e social.
A absoluta falta de postura do presidente
também se projetará sobre a própria disposição dos brasileiros de respeitarem a
lei e os direitos dos outros. Não me refiro apenas à longa lista de alegados
crimes de responsabilidade, que têm sido sistematicamente objeto de pedidos de
impeachment, de denúncias de crimes comuns que começam a ser
investigados pela Procuradoria-Geral da República, ou de eventuais crimes
contra a humanidade sob escrutínio de tribunais internacionais.
Falo de condutas mais corriqueiras que expressam uma espécie de obstinação do presidente em demonstrar que não aceita se submeter à regra da lei, como não usar capacete, trafegar do lado de fora do veículo, aglomerar ou não usar máscara. Nenhuma dessas atitudes que simbolizam sua insubordinação ao direito se equiparam, no entanto, ao gesto do presidente de abaixar, com um sorriso escancarado, a máscara de uma criança, em meio a uma pandemia que já ceifou mais de meio milhão de vidas, numa atitude ao mesmo tempo negligente e de clara exploração política daquela criança.
Como dispõe o código moral mais básico da
maioria das pessoas, incorporado pelo artigo 227 da Constituição Federal,
crianças devem ser objeto de um cuidado especial por parte de todos, devendo
ser colocadas a salvo de toda forma de negligência ou exploração. Ao abaixar a
máscara de uma criança, profanando esse código moral elementar, o presidente
demonstrou não apenas seu desprezo pela
lei, mas também pelo outro, como sujeito de direito, mesmo que
seja uma criança.
Convido a leitora e o leitor a pensar nas
consequências desse tipo de conduta sobre nossa capacidade de viver sob o
governo das leis, pelo qual autoridades e cidadãos se dispõem a pautar as suas
condutas e resolver os seus conflitos com base no direito.
Múltiplos são os fatores que contribuem
para que os cidadãos se submetam à autoridade do direito. Entre esses fatores,
certamente, está o da disposição de adultos e autoridades de respeitar as leis,
os direitos e os compromissos que eles mesmos estabeleceram para regular o
próprio comportamento.
Somente a partir do momento em que os
cidadãos tenham confirmadas as suas expectativas de que as autoridades
respeitam direitos e compromissos estabelecidos pela lei, tenderão a
reciprocamente respeitar as leis e os direitos dos outros. Isso é
particularmente relevante para a educação das novas gerações.
A insistência dos governantes de plantão de
explicitar, às escâncaras, o seu desprezo pelos direitos de grupos vulneráveis
e pelos limites estabelecidos pelo Estado de Direito terá um efeito devastador
sobre a disposição dos demais membros da comunidade em se comportar de acordo
com o império da lei. Pior do que isso, servirá de incentivo ao oportunismo e
mesmo à delinquência como padrões de comportamento a serem normalizados.
Reverter esse legado da barbárie é o desafio imediato de nossas instituições e, no limiar, do eleitor de 2022.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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