Renegociação de dívidas estaduais exige transparência
O Globo
Projeto de Pacheco se baseia em ideia
sensata, mas não pode ser usado como biombo para esconder calote
A iniciativa do presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), de apresentar um Projeto de
Lei Complementar com regras para a renegociação das dívidas de estados com
a União tem o mérito de colocar o Congresso num debate essencial: como tornar
sustentáveis as finanças dos entes federativos. Desde os anos 1990, diversos
programas foram adotados para que, no longo prazo, as dívidas estaduais
deixassem de ser um problema. Nenhum funcionou. Estados endividados se queixam
— não sem razão — de que os critérios do Regime de Recuperação Fiscal (RRF) em
vigor desde 2017 as tornaram impagáveis.
Em dezembro passado os estados deviam R$ 852 bilhões. São Paulo (R$ 304 bilhões), Rio de Janeiro (R$ 194 bilhões), Minas Gerais (R$ 157 bilhões) e Rio Grande do Sul (R$ 127 bilhões) respondiam por mais de 90% do total. Quatro estados aderiram ao RRF: Rio, Rio Grande do Sul, Goiás (dívida de R$ 22 bilhões) e Minas. Em troca de medidas para aumento de receitas e corte de despesas, eles usufruem moratórias temporárias e financiamentos com garantias da União. Nem sempre as contrapartidas têm sido honradas. O Rio, que tem a pior relação entre dívida e receita (portanto, a pior capacidade de pagamento), entrou recentemente com ação no Supremo Tribunal Federal alegando ser impossível cumpri-las. O Rio Grande do Sul passou a se beneficiar de uma moratória de três anos em razão da tragédia climática recente.
A proposta de Pacheco se sustenta numa ideia
sensata: o abatimento de dívidas por meio da entrega de empresas e outros
ativos estaduais ao governo federal. Nada mais lógico do que se desfazer de
bens para reduzir endividamento — é o que costumam fazer cidadãos e empresas em
apuros. Mas tudo fica mais complexo quando se consideram os interesses
políticos que cercam a questão. Deputados, senadores e governadores estão
interessados em se beneficiar da maior rodada de renegociação de dívidas
estaduais desde o fim dos anos 1990. Pacheco, em particular, tenta se cacifar
para concorrer em 2026 ao governo de Minas, um dos estados beneficiados pelo
projeto.
Sua proposta estabelece relação entre as
condições cumpridas pelos estados e o alívio nas condições de pagamento das
dívidas, hoje sujeitas a juros de 4% além da correção monetária. Dependendo das
contrapartidas, os juros poderiam ser até zerados. Se o estado entregar à União
ativos avaliados em 10% da dívida, caem um ponto percentual; se entregar 20%,
dois pontos; se investir os recursos em educação, infraestrutura ou segurança,
ganha direito a mais um ponto; e pode alocar mais outro ponto percentual num Fundo
Nacional de Equalização de Investimentos, destinado a todos os estados.
Obviamente o plano incomoda governadores de estados com finanças equilibradas,
que se julgam punidos pela gestão responsável do dinheiro público. É duvidoso
que se satisfaçam apenas com os recursos do fundo comum.
Um ponto central na engenharia financeira são
os critérios de avaliação dos bens usados para reduzir o endividamento. Teme-se
que a União e, por tabela, todos os contribuintes recebam ativos estaduais
superavaliados. Cabe questionar: por que os próprios estados não vendem suas
empresas e outros bens no mercado para pagar as dívidas? Sem transparência e
critérios de mercado, o projeto de Pacheco não passará de um biombo sofisticado
para esconder o mais simplório calote.
É urgente SUS fornecer novas drogas contra
câncer de mama
O Globo
Tratamento para tumor mais comum entre
mulheres foi aprovado há quase dois anos, mas não está disponível
É injustificável a demora do Ministério da
Saúde para levar ao sistema público medicamentos para
tratamento do câncer de
mama aprovados há quase dois anos pela Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias (Conitec) do SUS. Com o atraso, resta às pacientes recorrer à
Justiça, num caminho penoso — a entrega pode demorar até seis meses — e cruel.
O câncer de mama é o que mais acomete as
brasileiras. Serão registrados, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca),
perto de 74 mil novos casos no Brasil neste ano. Uma paciente
que descobriu a doença em 2018, já em estado avançado, contou ao GLOBO que,
mesmo recorrendo à Justiça, ainda teve de esperar cinco meses para receber o
medicamento. “Eu não estava esperando uma roupa ou algo do tipo, era minha vida
que eu aguardava”, disse.
Não deveria ser tão complicado, uma vez que
já há decisão a respeito. Depois de consulta pública, foi aprovado em abril um
protocolo que garante a distribuição dos medicamentos no SUS, mas a pasta ainda
não publicou o documento no Diário Oficial da União. Está prevista a
incorporação de dois tipos de medicamento: inibidores de ciclina, aprovados
pela Conitec em dezembro de 2021, e o trastuzumabe entansina, chancelado em
setembro de 2022. Por lei, os remédios devem ser incorporados em até 180 dias,
com 90 dias de prorrogação, prazos que já foram desrespeitados.
Os medicamentos, considerados de primeira
linha, são procurados por oferecer melhores resultados com menos efeitos
colaterais. A oncologista
Tatiana Strava, do Hospital Sírio-Libanês, especialista em câncer de mama,
afirma que aumentam a expectativa e a qualidade de vida das pacientes.
O Ministério da Saúde alega que o protocolo
sobre câncer de mama está em fase final e deverá ser publicado nas próximas
semanas. Argumenta que a aprovação da Conitec aconteceu no governo anterior sem
previsão de gastos e que alguns medicamentos estão em falta. É verdade que o
problema foi herdado e que a falta de recursos no orçamento não é irrelevante.
Mas a boa gestão pública está justamente em alocar as verbas onde são
necessárias. Não faltam rubricas do Orçamento para cortar, de modo a liberar o
dinheiro para drogas contra o câncer. A atual equipe assumiu há um ano e meio,
tempo suficiente para corrigir os problemas. Não dá para culpar os antecessores
por mazelas atuais. É preciso resolvê-las.
O serviço público tem normas rígidas, mas há
casos que demandam agilidade. A vacinação contra a Covid-19, em 2021, num
governo que pregava contra as vacinas, começou imediatamente após a Anvisa dar
sinal verde para a aplicação das doses. Não se pode perder tempo quando há
vidas em jogo. Oferecer no SUS remédios que aumentam a sobrevida de pacientes
com câncer de mama deveria ser prioridade. A burocracia estatal sempre pode
esperar.
Repúdio a imigrantes reflete desinformação
Folha de S. Paulo
Rechaço à entrada de estrangeiros, usado pela
ultradireita na Europa e nos EUA, ignora a importância deles para economia
Em eleições na Europa e
nos Estados
Unidos, o tema da imigração têm tido papel central. No velho
continente, muitos dos partidos de ultradireita atenuaram discursos em relação
a outras bandeiras, como rejeição à União
Europeia, aborto e
questões de gênero, para privilegiar o ataque à imigração.
Foram bem nas votações para o Parlamento
Europeu e, em alguns países, assumiram o governo (Itália e
Holanda) ou participam de coalizões governistas (Finlândia e Suécia). Mesmo
onde acabaram não chegando ao poder, como na França, eles vêm se fortalecendo
em pleitos nacionais.
Nos EUA, onde o Partido
Republicano ainda insiste em temas como o aborto, a questão que
mais toca os eleitores é a imigração.
A Folha mostrou que, pela primeira
vez, a maioria dos americanos diz apoiar a construção de um muro na fronteira
com o México. Cresce o número dos que afirmam que imigrantes são
mais propensos a cometer crimes —tese que não encontra amparo nos registros
policiais. E até imigrantes se dizem dispostos a votar em Donald Trump para
controlar a imigração.
O caso ganha ares de paradoxo porque a
imigração é a resposta mais óbvia para o problema da baixa natalidade que afeta
boa parte do mundo desenvolvido.
A taxa média de fecundidade dos países
da OCDE caiu
de 3,3 filhos por mulher em 1960 para 1,5 em 2022. Para manter a população
estável, o ideal seriam 2,1 filhos.
Tal fenômeno, se pode ser considerado boa
notícia para o meio ambiente, gera impactos na previdência. É preciso que haja
mais trabalhadores na ativa do que aposentados para que o sistema de seguridade
social não colapse.
O modo mais rápido e menos custoso de ao
menos atenuar o gargalo previdenciário é importar mão de obra —justamente o que
cidadãos dos países ricos parecem cada vez mais rejeitar.
Há, de fato, alguns aspectos problemáticos
nessa estratégia. A chegada de muitos estrangeiros, ainda que economicamente
positiva, tende a diminuir a coesão social; em alguns casos, pode até haver
aumento da violência.
E é claro que, se grandes contingentes se
opõem à imigração, ainda que sem muita base factual, a imigração torna-se um
problema real nos regimes democráticos.
É necessário convencer o eleitorado a
respeito de como a chegada de trabalhadores estrangeiros pode ser benéfica para
a economia.
Não é tarefa simples, obviamente.
Se já é difícil educar a população em temas
carregados por vieses, como a imigração, a tarefa se torna quase impossível
quando políticos extremistas exploram despudoradamente esses preconceitos para
chegarem ao poder.
Alívio americano
Folha de S. Paulo
Queda da inflação nos EUA eleva chance de
superar tensão aqui, se Lula colaborar
Os juros no
Brasil dependem em boa parte das taxas dos EUA, que por sua vez dependem das
perspectivas para a inflação lá.
Na semana que passou, soube-se que os preços
para o consumidor americano avançaram menos que o esperado, e o
índice caiu para 3% ao ano.
Além do mais, o presidente do banco central dos Estados
Unidos, Jerome Powell, disse ao Congresso que o mercado de trabalho
do país está menos aquecido.
Haveria indícios, portanto, de que a inflação
tende a se aproximar da meta de 2% anuais. Com isso, intensificou-se o debate
sobre a possibilidade de o Fed começar
a cortar sua taxa básica a partir de setembro. Na reunião do final deste julho,
ou mesmo antes, o BC americano já poderia dar sinais de que planeja aliviar as
condições financeiras.
Trata-se de uma mudança em relação às
expectativas negativas firmadas a partir de março, quando a percepção de subida
de preços mais duradoura nos EUA provocou alta do dólar e dificuldades para o
afrouxamento da política monetária no mundo e no Brasil.
Aqui a situação se agravou com a mudança da
meta fiscal em abril, com o voto dividido do BC em maio e com os reiterados
ataques de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aos juros e às
propostas de contenção de despesas de seu governo.
A nova posição da biruta inflacionária
americana pode vir a trazer alívio ao Brasil. Para aproveitar o vento
eventualmente favorável, é preciso que Lula reposicione o barco da política
fiscal.
No final deste julho, o governo apresentará
sua revisão bimestral de receitas e despesas para o ano. Também aí deve
anunciar as providências para cumprir a meta de saldo primário e o limite de
crescimento de gastos. Dada a situação das contas públicas, será necessário
bloquear despesas.
Caso o governo aja de modo a dirimir as
dúvidas a respeito do seu compromisso fiscal, recuperará parte do crédito. Em
agosto, com o envio ao Congresso do projeto de Orçamento de 2025, tal mensagem
poderia ser reforçada. É possível que seja uma grande oportunidade
para se deixar para trás a crise financeira de junho.
Unidos na indecência
O Estado de S. Paulo
O PT de Lula e o PL de Bolsonaro brigam por
quase tudo. Mas, quando se trata de se livrar de multas eleitorais, os dois
partidos dão as mãos e ajudam a aprovar mais uma obscena anistia
A toque de caixa e por ampla maioria, a
Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que
perdoa as multas impostas aos partidos políticos pelo descumprimento das cotas
de repasse do fundo eleitoral a candidaturas de negros e mulheres. Não se trata
de um valor trivial. As multas aplicadas pela Justiça Eleitoral entre 2018 e
2023 foram estimadas em R$ 23 bilhões, mas o valor pode ser ainda maior.
O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL),
até fez uma mise-en-scène ao não votar a PEC na semana passada. Não
havia acordo com o Senado, e o PT havia manifestado discordância sobre alguns
pontos do texto. Lira não queria que o ônus da proposta recaísse apenas sobre
os deputados e disse que o texto só seria pautado quando houvesse apoio de
todos os partidos e da Casa ao lado.
Não se sabe exatamente o que ocorreu nos
últimos dias, mas o fato é que o cenário, aparentemente, mudou da água para o
vinho. Logo após a aprovação do primeiro projeto de lei que regulamenta a
reforma tributária, a tramitação da PEC ganhou velocidade e quase unanimidade.
Pudera. Nada menos que 29 partidos podem ser
beneficiados pelo texto, capaz de gerar uma trégua na perniciosa polarização
que domina praticamente todas as discussões legislativas, inclusive a própria
reforma tributária.
Para facilitar esse tipo de acordo
suprapartidário, nada como a proximidade do início do recesso legislativo.
Ansiosos por se dedicar às disputas eleitorais em seus municípios no segundo
semestre, os deputados apresentam uma produtividade sem igual.
A admissibilidade da PEC havia sido aprovada
pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no ano passado, mas o parecer
final jamais chegou a ser votado pela comissão especial criada justamente para
discutir seus termos com profundidade. Mero detalhe, a ser ignorado quando
convém à maioria.
Assim, Lira aproveitou para submetê-la
diretamente ao plenário na quinta-feira, e a PEC foi aprovada por 344 votos a
89, em primeiro turno, e por 338 a 82, no segundo turno. Agora, o texto precisa
do apoio de ao menos 49 dos 81 senadores para ser promulgado.
Com a PEC, penalidades aplicadas na eleição
passada serão perdoadas. A Câmara inovou e criou um “Refis” para os partidos,
permitindo que dívidas mais antigas possam ser pagas em até 15 anos, sem
cobrança de juros, e as obrigações previdenciárias, em até cinco anos.
Os repasses de verba dos fundos partidário e
eleitoral não apenas serão mantidos, como poderão ser usados para pagar esses
débitos, inclusive os aplicados pelo uso de recursos de “origem não
identificada”, vulgo caixa dois. Não é só isso. A exemplo de igrejas, partidos
e federações passam a ter imunidade tributária, e sanções em fase de execução
ou já transitadas em julgado serão anuladas.
Para garantir que o montante de multas não
volte a crescer, a PEC facilita a vida dos partidos que descumprem a
determinação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de alocar a verba eleitoral e
tempo de propaganda eleitoral gratuita de forma proporcional entre candidatos
brancos e negros.
Candidaturas de negros receberão 30% dos
recursos dos fundos, mas um único candidato ou região poderá receber toda a
verba. Não há qualquer garantia de que essa cota será mantida no futuro, mas
quem descumpriu a norma em 2020 e 2022 poderá se livrar da punição se
compensá-la nas próximas quatro disputas eleitorais.
Solenemente ignoradas, mais de 30 entidades
manifestaram repúdio ao teor da PEC em nota e a classificaram como uma
“inaceitável irresponsabilidade”. À exceção do PSOL e do Novo, a maioria dos
integrantes das siglas, do PT ao PL, deu aval a essa farra que estimula o
caráter perdulário do uso dos recursos dos fundos que, é sempre importante
destacar, têm origem pública e ocupam espaço que poderia ser destinado a
qualquer outra política pública.
Trata-se da quarta anistia concedida pelos
partidos a si mesmos, mais um episódio a reforçar a necessidade de acabar com o
indecente financiamento público para forçar as siglas e suas lideranças a
trabalhar, conquistar apoiadores e se sustentar por conta própria.
Mais um conto chinês
O Estado de S. Paulo
Prometida fábrica da Shein no Nordeste não
sai do papel, um malogro que apenas confirma que o alto custo do investimento
no Brasil, que castiga produtores nacionais, não interessa à China
O acordo que uniria Coteminas e Shein num
investimento milionário no Nordeste, que prometia criar milhares de empregos e
fabricar no País 85% dos produtos vendidos aos consumidores brasileiros pela
chinesa, fracassou. Exigências da Shein consideradas inviáveis pelos
fornecedores nacionais deixaram claro que o empreendimento não vai ocorrer,
como mostrou reportagem do jornal Valor. Não é de admirar. Surpresa seria
a gigante da moda barata, que se tornou um dos aplicativos de vendas online
mais acessados no Brasil, adaptar-se aos custos e deficiências logísticas e de
infraestrutura que os produtores nacionais têm de enfrentar.
O interesse de empresas chinesas pelo mercado
consumidor brasileiro não é novo, e teoricamente a abertura de unidades físicas
no País tenderia a facilitar negócios e vendas. Além da lógica comercial, há o
alinhamento automático entre os governos petistas e a China, fruto da ilusão de
que os chineses proverão ao Brasil os investimentos necessários para que o País
se torne independente do “imperialismo norte-americano” e do malvado
“Ocidente”. Num seminário recente promovido pelo PT e pelo Partido Comunista Chinês,
a presidente petista, Gleisi Hoffmann, leu uma carta de Lula da Silva rasgando
elogios “ao camarada Xi Jinping”.
Ocorre que a visão tacanha de Lula, Gleisi e
da companheirada do PT os impede de enxergar que no mundo dos negócios decisões
são ditadas por lucro e rentabilidade, o que vale tanto para a economia liberal
dos Estados Unidos quanto para o “capitalismo de Estado” da China. O custo
Brasil não é uma abstração, mas um indicador real da dificuldade de produzir e
vender em território nacional. Cálculo do próprio governo, feito pelo
Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) no ano passado,
indica que esse custo adicional chega a R$ 1,7 trilhão, o que equivale a quase
20% do Produto Interno Bruto.
O valor se refere ao quanto é gasto a mais
pelos empreendedores no Brasil em comparação à média dos países da Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual a China faz parte
apenas como observadora, assim como o Brasil. Se integrasse a OCDE, é provável
que a China puxasse a média para baixo, a julgar por seu custo de mão de obra e
logística, que tem atraído ao território chinês grandes fabricantes dos mais
diversos países.
O caso da Shein não é o primeiro conto chinês
que um governo petista protagoniza. Em 2011, na inolvidável Presidência de
Dilma Rousseff, o então ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante,
atual presidente do BNDES, foi à China e lá anunciou com entusiasmo que a
fabricante de componentes eletrônicos Foxconn, com sede em Taiwan, iria
investir nada menos que US$ 12 bilhões na construção de uma “cidade
inteligente” no Brasil, que criaria impressionantes 100 mil empregos. O
investimento, em Jundiaí, nunca chegou nem perto disso, não transferiu
tecnologia ao País como anunciado, não gerou empregos de qualidade e em pouco
tempo teve sua linha de montagem de iPhones e iPads desativada.
Empresas como Shein e Foxconn – que se
agigantaram principalmente por conta de subsídios estatais, da baixa carga
tributária e de mão de obra barata – jamais abrirão mão de suas imensas
vantagens competitivas, enfrentando altos encargos trabalhistas e pesada carga
tributária, além de imensas deficiências de infraestrutura, sem nenhum tipo de
incentivo robusto e permanente.
Mas o governo petista acreditou em mais esse
conto chinês e, animado, em junho passado deu isenção de imposto para a
importação de artigos com valor abaixo de US$ 50 vendidos por plataformas
digitais – o core business da Shein. E o governo nem fez questão de
disfarçar que atuou em sintonia com os chineses: a portaria do Ministério da
Fazenda que deu a isenção foi publicada menos de 24 horas depois que o
representante da Shein posou para uma alegre foto com o presidente Lula da
Silva, num encontro que selou o acordo para a suposta vinda da fábrica chinesa
ao Brasil.
Resumo do conto: os chineses só virão ao
Brasil se fizerem as contas e decidirem que compensa.
Desculpas seletivas
O Estado de S. Paulo
Abordagem policial a jovens negros filhos de
diplomatas expõe realidade discriminatória
A abordagem truculenta de uma patrulha da
Polícia Militar (PM) do Rio a um grupo de cinco adolescentes, três deles
negros, em uma rua movimentada de Ipanema obrigou o Itamaraty a emitir pedidos
formais de desculpas às representações diplomáticas de Burkina Faso, Gabão e
Canadá.
Os três rapazes negros, todos filhos de
diplomatas, não falam português e foram o principal alvo dos PMs que desceram
da viatura policial de arma em punho, apontando para suas cabeças. Dos dois
jovens brancos, um era brasileiro e tentava traduzir para os amigos –
assustados, como ele próprio – as ordens dos policiais que os empurravam contra
um muro para a revista. Em entrevista à TV Globo, um dos rapazes brancos
relatou que a agressividade dos policiais ficou de fato concentrada nos três
africanos.
Os policiais, ao constatar a situação,
“aconselharam” os meninos negros a não perambularem pela região àquela hora
(20h06) porque corriam o risco de serem novamente “pegos”.
A embaixatriz do Gabão no Brasil,
Julie-Pascale Moudouté, mãe de um dos garotos, cobrou providências judiciais.
“Como que você vai apontar armas para a cabeça de meninos de 13 anos, como é
que é isso?”, perguntou, com razão.
É o que certamente perguntam mães de jovens
costumeiramente abordados pela polícia de maneira truculenta nas favelas e
zonas periféricas do Rio de Janeiro. Nesses casos, porém, não se tem
conhecimento de nenhum pedido de desculpas por parte do Estado.
A rápida retratação do Itamaraty tentou
evitar que o caso evoluísse para um grave incidente diplomático. A Secretaria
de Estado de Polícia Militar abriu investigação para apurar a conduta
aparentemente abusiva dos policiais e informou que vai verificar o conteúdo das
câmeras corporais que eles portavam. Seria bom que essa providência se
repetisse como consequência de qualquer denúncia de abuso policial em
abordagens de jovens negros que não são filhos de diplomatas, mas isso, como se
sabe, está longe de ser a regra.
Ainda não é possível dizer exatamente o que
motivou os policiais a fazer a abordagem dos adolescentes negros filhos de
diplomatas, porque a investigação está em andamento, mas uma das hipóteses
óbvias é de que tenha havido o chamado “perfilamento racial” – quando a busca
policial é realizada com base na raça dos indivíduos abordados, isto é,
conforme critérios subjetivos. Em outras palavras, é bastante plausível a
possibilidade de que os rapazes tenham sido abordados (com visível severidade)
apenas pelo fato de que eram negros, o que teria sido suficiente para
qualificar sua atitude como suspeita.
É evidente que nada disso encontra respaldo na lei, que demanda critérios rigorosamente objetivos para a abordagem policial, como, aliás, decidiu o Supremo Tribunal Federal em abril passado a respeito de um caso de “perfilamento racial”. Ser negro precisa de uma vez por todas deixar de configurar “atitude suspeita”, por razões que deveriam ser gritantemente óbvias.
Conquistas e desafios do ECA aos 34 anos
Correio Braziliense
Preservar os direitos dos brasileiros, da
primeira infância até a idade adulta, é um dever inalienável do Estado e da
sociedade
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
completou 34 anos de vigência neste último sábado mantendo-se como um dos
dispositivos legais mais completos na defesa dos direitos fundamentais de
brasileiros até 18 anos. Princípios como o direito dos jovens à convivência
familiar e à participação comunitária, bem como a prioridade na execução de
políticas públicas, são alguns pontos basilares do conjunto normativo
promulgado em 13 de julho de 1990. Administradores públicos, integrantes das
Varas da Infância e da Juventude e especialistas são unânimes em considerar o
ECA um instrumento valioso para assegurar cidadania a quem ainda não chegou à
idade adulta.
Como lei fundamental na defesa dos direitos
da criança e do adolescente, o estatuto adquire importância maior na medida em
que o século 21 impõe desafios e complexidades relevantes a serem superados.
Exemplo de corolário do ECA é a Lei Henry Borel, de 2022, que estabelece
mecanismos de prevenção para denunciar e combater a violência doméstica. Os
abusos cometidos em ambiente familiar constituem um dos adversários do ECA. O
alto número de denúncias registradas pelo governo federal — foram 145 mil casos
somente em 2024, à frente de agressões contra mulheres, idosos e pessoas com
deficiência — evidencia como é preciso avançar muito em medidas para impedir
que a brutalidade marque uma geração de brasileiros.
Note-se que a violência contra a criança e o
adolescente não é apenas intramuros. Passadas mais de três décadas, o país
ainda se depara com situações preocupantes, particularmente quando se trata de
operações policiais. Na última quinta-feira, durante seminário para lembrar os
34 anos do ECA, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, fez uma
crítica contundente à recente decisão judicial que absolveu três policiais
envolvidos na morte de João Pedro Matos no Rio de Janeiro. O jovem de 14 anos
foi baleado em casa, durante operação policial. "É uma coisa escabrosa. É
um desprezo tão grande à vida humana, de crianças e adolescentes, de um jovem
negro, de periferia", protestou. Em outro episódio, também ocorrido no Rio
de Janeiro, o Itamaraty divulgou um pedido formal de desculpas após policiais
militares abordarem de forma truculenta filhos de embaixadores negros em um
bairro nobre da capital fluminense.
Além das ameaças reais no convívio doméstico
e na cidade violenta, as autoridades dedicadas a implementar as diretrizes do
ECA alertam para os perigos decorrentes do ambiente virtual. É cada vez mais
sonoro o alerta sobre os danos provocados pela superexposição ou pelo
despreparo em relação aos meios digitais. "O uso inadequado da internet
pode se tornar um meio de adoecimento físico e mental significativo. É por
reconhecer este cenário múltiplo que debatemos o uso consciente de telas e
dispositivos, a violência no âmbito digital, as desigualdades digitais, a baixa
conectividade e a falta de acessibilidade comunicacional", alertou Marina
Poniwas, presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda).
Preservar os direitos dos brasileiros, da primeira infância até a idade adulta, é um dever inalienável do Estado e da sociedade. As dificuldades estruturais do país, somadas à dinâmica de um mundo cada vez mais conectado, exigem uma implementação firme, constante e abrangente de ações ligadas ao ECA que garantam cidadania e perspectiva para a futura geração. São essas crianças e adolescentes que, em poucos anos, se tornarão eleitores e eleitos para tornar o Brasil uma nação mais justa, igualitária e inclusiva.
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