Joice Bacelo e Marcelo Coppola / Valor Econômico
Para especialistas ouvidos pelo Valor, o que
há é uma ‘confusão de papéis’, embora ela seja amparada pela Constituição
Ministros, parlamentares e integrantes do governo Lula saíram em defesa de Alexandre de Moraes depois de reportagem da “Folha de S.Paulo” revelar mensagens sobre suposto uso do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para embasar investigações conduzidas no Supremo Tribunal Federal (STF). Do outro lado, nomes ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e críticos ao ministro rascunham pedidos de impeachment e de nulidade das investigações. Mas, afinal, Alexandre de Moraes, agiu ou não fora da lei?
Juristas ouvidos pelo Valor dizem que existe, de
fato, uma “confusão de papéis”, mas amparada pela Constituição. O desenho
institucional da Justiça brasileira permite que um ministro do STF ocupe
cadeira no TSE e exerça o “poder de polícia” da Justiça Eleitoral. Além disso,
apesar do tom de excessiva informalidade entre os assessores, a maioria dos
especialistas não vê elementos que coloquem em dúvida a conduta do ministro.
Não é uma unanimidade. Há divergências também sobre a possibilidade de
anulações.
Conduta
Cinco juristas ouvidos pelo Valor consideram
que as mensagens até agora reveladas não são suficientes para afirmar que
Moraes ultrapassou o limite legal. São eles: o advogado constitucionalista
Pedro Serrano, os criminalistas Pierpaolo Cruz Bottini e Fernando Fernandes e
os professores da FGV Direito SP Fernando Neisser e Eloísa Machado.
Os especialistas levam em conta, basicamente,
três questões: o conteúdo das mensagens, que envolvem informações públicas,
divulgadas em redes sociais; o fato de o ministro presidir o TSE quando houve
contato entre os assessores - e, nesse caso, estar amparado pelo chamado “poder
de polícia” -; e a atuação de Moraes no inquérito das “fake news” ter aval do
STF.
Esse inquérito é alvo de críticas desde a
origem. Foi aberto em 2019 pelo próprio STF para apurar ameaças a seus
integrantes e disseminação de conteúdo falso na internet. O sigilo e a
permissão para que um ministro tenha papel de investigador, acusador e julgador
foram e ainda são contestados no meio jurídico. Mas essa situação, dizem os
especialistas, está superada, pois o plenário do STF decidiu a favor do
inquérito em 2020.
Poder de polícia
Além da função jurisdicional, a Justiça Eleitoral tem, por lei, a função
administrativa de realizar as eleições. Em razão disso, também por lei, existe
o que se chama de “poder de polícia”, que é a capacidade de atuar sem ter sido
provocada por ninguém. “Se o juiz eleitoral estiver a caminho do trabalho e se
deparar com uma placa de propaganda irregular, ele deve parar o carro, pegar a
placa e levá-la apreendida para o cartório” exemplifica Fernando Neisser.
Significa, em outras palavras, que o juiz
eleitoral pode investigar e determinar medidas com a função de salvaguardar o
bom andamento da eleição.
A troca de mensagens ocorre no período em que
Moraes era presidente do TSE. A Corte Eleitoral tem ministros do STF em sua
composição por determinação da Constituição Federal. “Quando um ministro do STF
exerce função de ministro também no TSE, ele acumula esses poderes, funções e
deveres. Se toma conhecimento num cargo, aciona o outro automaticamente. É
obrigado a fazer isso”, diz Serrano.
Comunicação informal
A troca de mensagens ocorreu principalmente entre Airton Vieira, juiz instrutor
no gabinete de Moraes no STF, e Eduardo Tagliaferro, que atuava como chefe da
Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE - criada em 2020,
quando o ministro do Edson Fachin esteve à frente da Corte Eleitoral.
A maioria dos especialistas concorda que o
tom da conversa foi bastante informal, mas não vê problemas de ter havido
comunicação direta entre os dois.
“Falamos, no direito, que assessores são
‘longa manus’ do ministro. Atuam em seu nome e exercem funções que o próprio
ministro pode exercer”, diz Serrano. “Se o ministro pede ao assessor que fale
com um subordinado seu em outro tribunal, não há intervenção indevida. É o
próprio ministro falando ao seu subordinado atrás de outro subordinado.”
Não haveria, portanto, necessidade de troca
de ofício. O ofício, segundo os especialistas, é um instrumento de comunicação
entre autoridades diversas. No caso envolvendo Moraes, apesar de os cargos
serem diversos - STF e TSE -, o ministro é o mesmo. “Não há elementos para
afirmar que tenha havido abuso de poder. O problema, se existe, está no desenho
institucional da Justiça brasileira, que permite que um ministro do STF exerça
o poder de polícia no tribunal eleitoral”, diz Eloísa Machado.
Conteúdo das mensagens
Segundo reportagem da “Folha”, Eduardo Tagliaferro, chefe da AEED, fazia
varredura nas redes sociais dos investigados, elaborava relatório e enviava ao
gabinete do ministro para ser incluído no inquérito. O trabalho era solicitado
por WhatsApp pelo juiz instrutor do gabinete de Moraes no STF.
Para o professor Fernando Neisser, da forma
como está colocado, dá a entender - de maneira equivocada - que houve produção
de provas. “Passa uma impressão de que a AEED chutava a porta da casa do
sujeito, fazia busca e apreensão do computador e entregava ao STF. Mas não é
isso. A única coisa que fez foi olhar informações públicas que estão na
internet”, ele diz. O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini concorda e acrescenta
que não se consegue, pelas mensagens publicadas até gora, identificar a conduta
do ministro. “As referências são indiretas”, afirma.
Também ouvida pelo Valor, a advogada Vera Chemim
entende de forma diferente. Para ela, os diálogos parecem remeter à
“extrapolação da conduta do ministro”. O entendimento é de que pode ter havido
uma exigência para que o perito do TSE procurasse provas sobre condutas de
determinadas pessoas com a finalidade de elaborar os relatórios solicitados.
“São supostos indícios. Terão que ser ratificados.”
Perseguição
Após a revelação das mensagens, bolsonaristas passaram a acusar Moraes de ter
usado o TSE para, durante a campanha eleitoral, perseguir apoiadores do
ex-presidente.
Para a professora Eloísa Machado, não há
elementos até agora que confirmem isso. “Os diálogos não revelam a chamada
‘pescaria’ probatória, proibida pela Justiça brasileira, que é quando uma
investigação busca pegar qualquer prova para incriminar uma pessoa. No caso,
trata-se de uma prática de natureza muito diferente, coletar informações que
são públicas, que foram veiculadas nas redes sociais”, diz.
Nulidade das investigações
Em princípio, levando em conta somente os diálogos revelados até aqui, não se
veem elementos que possam gerar nulidade, segundo Pedro Serrano. Ele frisa, no
entanto, que só será possível responder a essa pergunta com uma análise
rigorosa de cada caso. “Porque, aparentemente, eram somente informações
públicas. Mas, de repente, o perito do TSE olhou o público e o privado também.
Isso só dá para responder olhando caso a caso. Do que está posto agora, nada
impressiona”, ele diz.
Vera Chemim discorda. Para ela, é preciso
considerar a jurisprudência que se criou na Lava-Jato, com o vazamento de
trocas de mensagens entre o ex-juiz Sergio Moro e procuradores. “Vejo como
situações similares. E a exemplo do que aconteceu na Lava-Jato deveria, agora,
provocar a nulidade”, ela afirma.
Todos os demais especialistas ouvidos
pelo Valor, no
entanto, não concordam que exista semelhança entre as duas situações. “Não é um
processo penal. Só por isso já é incomparável à Lava-Jato”, diz Serrano. “Não é
um processo penal em que há duas partes que têm que ser tratadas de forma igual
pelo juiz. Há uma investigação e durante a investigação a defesa nem se
pronuncia.”
Bottini afirma, além disso, que o objeto das
conversas da Lava-Jato é bastante diferente do caso envolvendo Moraes. “Apontam
agentes cruzando a fronteira da legalidade. Procuradores debatem o uso de dados
sigilosos, sob reserva de jurisdição, e a divulgação de elementos da
investigação para a imprensa, com o objetivo de desgastar réus perante a
opinião pública ou emparedar aqueles que poderiam reformar as decisões
judiciais de interesse dos agentes da operação.”
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