Valor Econômico
Haddad e Tebet precisam ter cuidado com o cavalo de Troia da proposta que quer acabar com penduricalhos
De tempos em tempos surge em Brasília a
esperança de que alguma proposta legislativa vai provocar profundas mudanças em
algum dos nossos imensos desajustes econômicos.
A bola da vez é o PL nº 2.721/2021,
popularmente conhecido como PL dos Supersalários, que promete acabar com os
penduricalhos que fazem com que uma pequena elite de servidores públicos receba
mais do que o teto remuneratório previsto na Constituição, atualmente em R$
44.008,52 (o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal).
O item já apareceu em entrevistas dos ministros Fernando Haddad e Simone Tebet e vem sendo apontado como um dos pilares do pacote de medidas de corte de gastos que o governo deve anunciar após o segundo turno das eleições municipais. Diz-se que a aprovação do PL pode gerar uma economia de até R$ 5 bilhões anuais, o que seria uma boa ajuda para manter o arcabouço fiscal em pé.
As estimativas de economia que circulam pela
imprensa baseiam-se em estudos do Centro de Liderança Pública (CLP),
organização que realiza cursos de capacitação de gestores públicos e desenvolve
campanhas para incidir sobre políticas públicas.
A nota técnica do CLP sobre o PL dos
Supersalários tem o mérito de apresentar um cálculo aproximado do volume de
recursos que é transferido para uma parcela ínfima de privilegiados (menos de
20 mil servidores, segundo seu levantamento) em desrespeito ao limite legal.
Mas trata-se de um retrato apenas parcial da realidade.
Baseada na Relação Anual de Indicadores
Sociais (Rais) e na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
Contínua, a avaliação do CLP tem limitações. Por serem levantamentos
declaratórios ou amostrais, essas fontes de dados não retratam fielmente a
realidade das folhas de pagamentos de cada órgão público brasileiro.
Apenas se mergulharmos nas informações dos
contracheques que constam nos portais de transparência dos órgãos públicos é
que podemos ter a dimensão real da economia que um limite rigoroso aos
pagamentos acima do teto do funcionalismo pode trazer.
Uma pequena amostra eu apresento no livro “O
País dos Privilégios: os novos e velhos donos do poder”. Levando em
consideração dados das folhas de pagamento de todos os tribunais do país
compilados pelo Conselho Nacional de Justiça, calculei que no ano passado 93%
dos magistrados brasileiros receberam mais do que os ministros do STF, o que
representa um total de R$ 8 bilhões acima do teto.
Se o mesmo exercício for feito em todos os
ramos do Ministério Público e ainda em cada um dos órgãos do Executivo e do
Legislativo da União, Estados e municípios, certamente teremos valores
superiores a R$ 20 bilhões.
O problema, porém, é que essa economia
dificilmente se converterá em realidade caso o PL dos Supersalários seja
aprovado.
No artigo 2º do texto já aprovado na Câmara
dos Deputados e agora em discussão no Senado, estão impressas as digitais dos
lobbies das carreiras mais poderosas do funcionalismo, na forma de 32 exceções
que autorizarão pagamentos acima do teto salarial, caso o projeto vire lei.
Estão lá a conversão em dinheiro de até 30
dias de férias não gozadas, os pagamentos retroativos, o auxílio-moradia e
outras verbas que fazem a festa de juízes e membros do Ministério Público, que
aliás continuarão a ter direito a 60 dias de descanso por ano.
Também estarão isentos os adicionais noturnos
e as horas extras que possibilitam que servidores do Congresso recebam com
frequência mais do que senadores e deputados.
O texto também não põe limites (ou, se o faz,
são frouxos) às verbas de representação (pagas em dólar) que permitem que
diplomatas brasileiros figurem como alguns dos mais bem pagos do mundo, às
diárias que turbinam holerites de servidores e autoridades (inclusive dos
tribunais de contas, que deveriam dar o exemplo) quando vão fazer “turismo
corporativo” no exterior.
Militares também trataram de garantir isenção
para a bolada que recebem quando passam para a inatividade, além do
auxílio-farda e de outras “compensações” e “indenizações” (das 32 exceções do
PL, oito beneficiam os fardados).
Há no projeto também uma autorização legal
para pagamentos que no setor privado têm natureza remuneratória, mas que
beneficiarão todos os servidores, mesmo se ultrapassarem o teto:
auxílio-alimentação (até 3% do teto), plano de saúde (até 5% do teto), auxílio-transporte
(até 3% do teto), indenização por uso de veículo próprio (até 7% do teto) e
auxílio-creche (até 3% do teto por dependente até 5 anos de idade).
Em vez de extingui-lo, o PL também isenta do
limite o auxílio-funeral, benefício pago à família dos servidores quando eles
falecem.
Se algum assessor de Haddad ou Tebet ainda não o fez, aqui vai o alerta: completamente desfigurado pelos lobbies das carreiras mais poderosas da República, o PL dos Supersalários, em vez de cortar despesas, vai legitimar uma série de penduricalhos, tornando ainda mais difícil a reforma administrativa no futuro.
2 comentários:
Muito bom! É bem isto!
Mal acostumados.
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